“Não, não… não tive culpa. Não tive…”
— Calma, meu senhor. Tenha calma. Algum problema?
Despertei e, ao abrir os olhos, o corpo em febre, percebi a presença de um jovem junto a mim.
— Eu… não… — a voz me faltava, a cabeça a girar, sem forças.
— Você está ferido! — constatou.
— Sede. Estou com… sede. Água, por favor — pedi-lhe.
Ele, de pronto, me atendeu. Bebi a goles grandes na quartinha, engasgando-me.
— Devagar. Sem pressa, seu… Seu nome? — indagou-me.
Não emiti resposta, apenas diminuí a voracidade com que me dessedentava e observei a sua fisionomia. Quase da idade daquele que ficara morto na areia; motivo da minha fuga, do meu desespero.
— Eu me chamo Lourenço. Lourenço de Maria. Muito prazer — falou, a me demonstrar confiança.
Fechei os olhos, um zumbido na mente e um peso na consciência a me remeterem ao pesadelo do qual fugira. “Ninguém para levar esse condenado, tirá-lo daqui!”
— Senhor?
— Meu nome é Batista. Batista de Assunção.
— Prazer em conhecer, seu Batista — disse-me, apertando a minha mão direita, numa espécie de saudação costumeira.
Fiquei com a mão grossa presa entre os dedos finos daquele rapaz, tomado de surpresa com o seu ato, com a sua educação. Inventara aquele nome, confesso que mais preocupado em preservá-lo do meu drama, evitando ligá-lo de alguma maneira à minha tragédia. “Pai e filho, meu Deus!”
As vozes a me inquietarem, a remoerem a minha paciência — “Vá, deixe de coisa! Não quero briga!” —; a lembrança a espicaçar dentro dos meus miolos.
— Vamos para minha casa, senhor Batista. Moro aqui bem perto. Lá cuidarei desses ferimentos. É coisa superficial, mas não se deve deixar isso piorar. Prevenir é melhor do que remediar, sempre me ensinou meu saudoso avô — disse-me, tentando me levantar do chão em que me encontrava.
— Não. Não tive… culpa… Pai e filho… meu Deus!
Nada falou, apenas ofertou-me o ombro amigo e, com jeito, foi me conduzindo. Encontrávamo-nos à beira do rio; não sabia identificar o lugar exato, pois não me lembrava do quão distante chegara naquela carreira desabalada.
— Meu filho, eu não presto. Deixe-me aqui. Que Deus me leve logo, e meu corpo sirva de festa para os urubus… Eu… eu não presto.
— Calma, meu senhor. Não se deve pronunciar más palavras. Deus é grande, e maior ainda a Sua misericórdia — devolveu-me.
Sem me alimentar bem há dias, as pernas me faltavam. Quando atingimos o alto da ribanceira, divisei uma casinha de palha, tão parecida com a minha. Aquilo me encheu os olhos de lágrimas e…
— Estamos chegando, seu Batista. Um pouquinho mais. Força, força nas pernas! — estimulava-me.
Deitou-me numa manta sobre um trançado de palha, disposta no canto do casebre. Em seguida, cobriu-me com um lençol, a declarar-me:
— Fique aqui e descanse. Vou preparar um caldo de peixe para melhorar seu ânimo.
Lá fora, o passaredo a encher os ares com um trinado doce e festivo.
Quis me levantar, mas não pude. A cabeça zonza; fraco, entreguei-me e mergulhei num sono profundo. “Não tive… culpa, Lourenço… Pai e filho… meu Deus!”
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