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Culpa — Capítulo II

“Não, não… não tive culpa. Não tive…”

— Calma, meu senhor. Tenha calma. Algum problema?

Despertei e, ao abrir os olhos, o corpo em febre, percebi a presença de um jovem junto a mim.

— Eu… não… — a voz me faltava, a cabeça a girar, sem forças.

— Você está ferido! — constatou.

— Sede. Estou com… sede. Água, por favor — pedi-lhe.

Ele, de pronto, me atendeu. Bebi a goles grandes na quartinha, engasgando-me.

— Devagar. Sem pressa, seu… Seu nome? — indagou-me.

Não emiti resposta, apenas diminuí a voracidade com que me dessedentava e observei a sua fisionomia. Quase da idade daquele que ficara morto na areia; motivo da minha fuga, do meu desespero.

— Eu me chamo Lourenço. Lourenço de Maria. Muito prazer — falou, a me demonstrar confiança.

Fechei os olhos, um zumbido na mente e um peso na consciência a me remeterem ao pesadelo do qual fugira. “Ninguém para levar esse condenado, tirá-lo daqui!”

— Senhor?

— Meu nome é Batista. Batista de Assunção.

— Prazer em conhecer, seu Batista — disse-me, apertando a minha mão direita, numa espécie de saudação costumeira.

Fiquei com a mão grossa presa entre os dedos finos daquele rapaz, tomado de surpresa com o seu ato, com a sua educação. Inventara aquele nome, confesso que mais preocupado em preservá-lo do meu drama, evitando ligá-lo de alguma maneira à minha tragédia. “Pai e filho, meu Deus!”

As vozes a me inquietarem, a remoerem a minha paciência — “Vá, deixe de coisa! Não quero briga!” —; a lembrança a espicaçar dentro dos meus miolos.

— Vamos para minha casa, senhor Batista. Moro aqui bem perto. Lá cuidarei desses ferimentos. É coisa superficial, mas não se deve deixar isso piorar. Prevenir é melhor do que remediar, sempre me ensinou meu saudoso avô — disse-me, tentando me levantar do chão em que me encontrava.

— Não. Não tive… culpa… Pai e filho… meu Deus!

Nada falou, apenas ofertou-me o ombro amigo e, com jeito, foi me conduzindo. Encontrávamo-nos à beira do rio; não sabia identificar o lugar exato, pois não me lembrava do quão distante chegara naquela carreira desabalada.

— Meu filho, eu não presto. Deixe-me aqui. Que Deus me leve logo, e meu corpo sirva de festa para os urubus… Eu… eu não presto.

— Calma, meu senhor. Não se deve pronunciar más palavras. Deus é grande, e maior ainda a Sua misericórdia — devolveu-me.

Sem me alimentar bem há dias, as pernas me faltavam. Quando atingimos o alto da ribanceira, divisei uma casinha de palha, tão parecida com a minha. Aquilo me encheu os olhos de lágrimas e…

— Estamos chegando, seu Batista. Um pouquinho mais. Força, força nas pernas! — estimulava-me.

Deitou-me numa manta sobre um trançado de palha, disposta no canto do casebre. Em seguida, cobriu-me com um lençol, a declarar-me:

— Fique aqui e descanse. Vou preparar um caldo de peixe para melhorar seu ânimo.

Lá fora, o passaredo a encher os ares com um trinado doce e festivo.

Quis me levantar, mas não pude. A cabeça zonza; fraco, entreguei-me e mergulhei num sono profundo. “Não tive… culpa, Lourenço… Pai e filho… meu Deus!”

clauderarcanjo@gmail.com

Escrito por Clauder Arcanjo

O senador valentão

AGOSTO ACABOU?* ESTÃO TODOS AÍ?