Sobre

Culpa – Capítulo V

— Mamãe?!… Mamãe?!

— Fique calmo.

Aquela voz macia me tirou de um estado de torpor, me arrancando de um sonho estranho. Via a presença de minha mãe, mas era como ela se afastasse de mim, quanto mais eu gritava por sua presença.

— Procure manter a calma, você passou por um grande susto. Tudo vai ficar bem.

Ao abrir os olhos, a presença daquela jovem junto a mim me espantou. Eu, assustado, quis erguer o meu corpo da rede.

Ela, com sua presença marcante, levou a mão direita sobre o meu peito, a me exigir que não me levantasse.

Ao perceber que eu estava mais sereno, saiu em direção ao fogão a lenha no fundo do casebre. De lá voltou com uma caneca de ágata e me serviu uma espécie de mingau. De início, quis rejeitar, mas ela foi me servindo, enquanto me contava sua história de vida.

— Não se ache nem pior nem melhor do que ninguém, meu senhor. Aqui nestas terras já tem acontecido muita desgraça, a luta é grande, a seca de vez em quando vem roubar as nossas forças. Muitos desistem daqui, debandam para outros mundos; alguns retornam até piores. O filho mais velho do seu Bartolomeu, morador de um pedaço de chão aqui perto, foi tentar a vida pelas bandas da selva, e voltou meio abilolado pelo que sofreu por lá. Eu preferi ficar. Não nego que muitos dos meus familiares resolveram tentar a sorte em outros rincões. Meu sogro… e depois meu esposo… — Calou-se, os olhos perdidos, a mão com a colher suspensa entre a caneca e a minha boca.

Respeitei aquele momento, silenciando e baixando o rosto em direção ao chão batido.

— E eu aqui trazendo minhas desgraças para junto do senhor…

— Não se preocupe. Dizem que é bom falar do que nos aperreia o juízo — disse-lhe.

Enxugou os olhos na manga do vestido de chita e terminou de me servir.

Quando se retirou para lavar a caneca, ouvi a voz de uma mulher na entrada:

— Creuza?

— Sim. Pode entrar.

A velha senhora foi logo perguntando sobre o meu estado:

— Como ele passou a noite?

— Dormiu assim… inquieto. Falando muito no meio do sono cortado, umas coisas estranhas de quem anda muito aperreado, a alma metida em agonia — respondeu Creuza, era este então o nome dela, àquela senhora que chegara.

Levantei-me, calcei as alpercatas que estavam embaixo da rede e vesti a minha camisa surrada. Pendurada numa forquilha, a minha faca. Antes de colocá-la no cós da calça, a pergunta de Creuza:

— O senhor pensa que vai para onde?

Uma tontura me invadiu a cabeça e o mundo começou a rodar diante dos meus olhos. Fui colhido pelos braços de Creuza:

— Venha se deitar, homem de Deus! Lembre-se de que você está sob os meus cuidados. Recebi esta missão do meu compadre.

Tentei reunir forças para me manter de pé, porém nada me acudiu e eu… desmaiei.

O desespero de Creuza:

— Chegue aqui, dona Das Dores. Me ajude a colocar ele na rede.

&&&

“Devia ter vindo para junto deles, no reino dos mortos. Mas intercederam por ele, sem merecer…”

O mesmo pesadelo de antes, só que agora a presença de Creuza a me levar para fora daquele inferno. “Confie em mim, coloque seu braço sobre o meu ombro e vamos sair daqui… Seja forte.”

Uma luz distante. Caminhava com dificuldade, Creuza a me sustentar. De vez em quando, ela clamava pelos santos: “São José, valei-nos!, São Francisco de Assis, guarde a gente!, Santa Ana, minha madrinha…”

&&&

Na saída, os olhos incomodados pela luz forte.

— Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós! — era a velha senhora, dona Das Dores, ao meu lado. O terço de grandes contas por entre os dedos enrugados.

Ao correr os olhos em volta, ela logo me acudiu:

— Creuza volta logo. Ela foi pedir ajuda ao Jacinto, filho do Felisberto. Ele é uma espécie de doutor nessas lonjuras tão esquecidas por Deus e pelos homens.

Quando Creuza chegou acompanhada pelo Jacinto, senti uma alegria por vê-la.

Creuza foi logo explicando ao “doutor” tudo que acontecera comigo.

Jacinto me analisou o pescoço. Mexeu com a minha cabeça para um lado e para o outro, correu a mão pela minha nuca, como se contando as vértebras. No final, pegou no meu pulso, a verificar a pulsação; e, sem alarde, informou a Creuza:

— Não há muito por que se preocupar. Agora é dar tempo para curar essas marcas, e rezar para que Deus lhe dê novamente a paz de espírito. Quem ficará cuidando dele? É sempre bom vigiar de perto, quem tentou uma vez pode…

— Eu cuidarei, seu Jacinto. Não deixarei que nada de mal aconteça a ele, fique certo — disse-lhe Creuza, enquanto me sentia contente pelo anúncio dos cuidados daquela minha protetora.

Colocou-me para dormir. À noitinha, cantigas de roda saíram dos seus lábios, enquanto uma serenidade invadia o meu corpo.

— Creuza, você vai estar sempre aqui?

Ela deitou-se, não sem antes me pedir:

— Durma. Estarei sempre aqui.

E eu adormeci tranquilo, como há dias não acontecia.

Sonhei com os olhos claros de Creuza, um olhar protetor num rosto de uma beleza cativante.

Escrito por Clauder Arcanjo

Carol Melo, Caramelo 

Tá na Rede: Posicionamento político é todo dia