— Mamãe?!… Mamãe?!
— Fique calmo.
Aquela voz macia me tirou de um estado de torpor, me arrancando de um sonho estranho. Via a presença de minha mãe, mas era como ela se afastasse de mim, quanto mais eu gritava por sua presença.
— Procure manter a calma, você passou por um grande susto. Tudo vai ficar bem.
Ao abrir os olhos, a presença daquela jovem junto a mim me espantou. Eu, assustado, quis erguer o meu corpo da rede.
Ela, com sua presença marcante, levou a mão direita sobre o meu peito, a me exigir que não me levantasse.
Ao perceber que eu estava mais sereno, saiu em direção ao fogão a lenha no fundo do casebre. De lá voltou com uma caneca de ágata e me serviu uma espécie de mingau. De início, quis rejeitar, mas ela foi me servindo, enquanto me contava sua história de vida.
— Não se ache nem pior nem melhor do que ninguém, meu senhor. Aqui nestas terras já tem acontecido muita desgraça, a luta é grande, a seca de vez em quando vem roubar as nossas forças. Muitos desistem daqui, debandam para outros mundos; alguns retornam até piores. O filho mais velho do seu Bartolomeu, morador de um pedaço de chão aqui perto, foi tentar a vida pelas bandas da selva, e voltou meio abilolado pelo que sofreu por lá. Eu preferi ficar. Não nego que muitos dos meus familiares resolveram tentar a sorte em outros rincões. Meu sogro… e depois meu esposo… — Calou-se, os olhos perdidos, a mão com a colher suspensa entre a caneca e a minha boca.
Respeitei aquele momento, silenciando e baixando o rosto em direção ao chão batido.
— E eu aqui trazendo minhas desgraças para junto do senhor…
— Não se preocupe. Dizem que é bom falar do que nos aperreia o juízo — disse-lhe.
Enxugou os olhos na manga do vestido de chita e terminou de me servir.
Quando se retirou para lavar a caneca, ouvi a voz de uma mulher na entrada:
— Creuza?
— Sim. Pode entrar.
A velha senhora foi logo perguntando sobre o meu estado:
— Como ele passou a noite?
— Dormiu assim… inquieto. Falando muito no meio do sono cortado, umas coisas estranhas de quem anda muito aperreado, a alma metida em agonia — respondeu Creuza, era este então o nome dela, àquela senhora que chegara.
Levantei-me, calcei as alpercatas que estavam embaixo da rede e vesti a minha camisa surrada. Pendurada numa forquilha, a minha faca. Antes de colocá-la no cós da calça, a pergunta de Creuza:
— O senhor pensa que vai para onde?
Uma tontura me invadiu a cabeça e o mundo começou a rodar diante dos meus olhos. Fui colhido pelos braços de Creuza:
— Venha se deitar, homem de Deus! Lembre-se de que você está sob os meus cuidados. Recebi esta missão do meu compadre.
Tentei reunir forças para me manter de pé, porém nada me acudiu e eu… desmaiei.
O desespero de Creuza:
— Chegue aqui, dona Das Dores. Me ajude a colocar ele na rede.
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“Devia ter vindo para junto deles, no reino dos mortos. Mas intercederam por ele, sem merecer…”
O mesmo pesadelo de antes, só que agora a presença de Creuza a me levar para fora daquele inferno. “Confie em mim, coloque seu braço sobre o meu ombro e vamos sair daqui… Seja forte.”
Uma luz distante. Caminhava com dificuldade, Creuza a me sustentar. De vez em quando, ela clamava pelos santos: “São José, valei-nos!, São Francisco de Assis, guarde a gente!, Santa Ana, minha madrinha…”
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Na saída, os olhos incomodados pela luz forte.
— Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós! — era a velha senhora, dona Das Dores, ao meu lado. O terço de grandes contas por entre os dedos enrugados.
Ao correr os olhos em volta, ela logo me acudiu:
— Creuza volta logo. Ela foi pedir ajuda ao Jacinto, filho do Felisberto. Ele é uma espécie de doutor nessas lonjuras tão esquecidas por Deus e pelos homens.
Quando Creuza chegou acompanhada pelo Jacinto, senti uma alegria por vê-la.
Creuza foi logo explicando ao “doutor” tudo que acontecera comigo.
Jacinto me analisou o pescoço. Mexeu com a minha cabeça para um lado e para o outro, correu a mão pela minha nuca, como se contando as vértebras. No final, pegou no meu pulso, a verificar a pulsação; e, sem alarde, informou a Creuza:
— Não há muito por que se preocupar. Agora é dar tempo para curar essas marcas, e rezar para que Deus lhe dê novamente a paz de espírito. Quem ficará cuidando dele? É sempre bom vigiar de perto, quem tentou uma vez pode…
— Eu cuidarei, seu Jacinto. Não deixarei que nada de mal aconteça a ele, fique certo — disse-lhe Creuza, enquanto me sentia contente pelo anúncio dos cuidados daquela minha protetora.
Colocou-me para dormir. À noitinha, cantigas de roda saíram dos seus lábios, enquanto uma serenidade invadia o meu corpo.
— Creuza, você vai estar sempre aqui?
Ela deitou-se, não sem antes me pedir:
— Durma. Estarei sempre aqui.
E eu adormeci tranquilo, como há dias não acontecia.
Sonhei com os olhos claros de Creuza, um olhar protetor num rosto de uma beleza cativante.