Últimas histórias

  • O que posso dizer?

    O que eu sei? Tenho noção de que conheço alguma coisa do mundo e posso contar sobre isso, mas o que realmente importa às pessoas? Entre minhas conversas com a psicóloga Flávia Passalacqua me soava estranho ouvi-la comentar que não tinha nada de interessante para dizer à humanidade além do que já fazia em seu consultório. O estranhamento era a suposta incongruência de uma mulher de idade com uma missão filantrópica árdua de ouvir pessoas em situação de vulnerabilidade emocional não achar que teria uma contribuição a dar com suas palavras. Se ela não tinha o que dizer, quem teria? Por muito tempo isso fica retornando à minha cabeça não como algo negativo, mas como um pensamento a ser considerado. Dizer algo exige muita certeza e condição de provar um ponto, exige muita energia e disposição para se manter exposto aos outros que também têm o que dizer.

    Desde a virtualização das redes sociais grupos humanos constituem importância vital em coisas simples, tornando acontecimento aquilo que entendíamos como corriqueiro, cotidiano. Agora, comer é um acontecimento, caminhar é um acontecimento, encontrar a família, visitar amigos. Tudo é um acontecimento nos espaços virtuais daqueles que têm muito a dizer. O final do século XX criou uma nova leva de filósofos comunicadores que sempre têm muito a explicar e a ensinar da vida. Eles substituíram os padres e esotéricos, estes febres no final dos anos 1990. Agora, na segunda década do século XXI, até os cientistas entraram nas redes para comentar e divulgar seu conhecimento sobre tudo. Quer dizer, tem muita gente tendo o que dizer e eu cada vez mais fico com a impressão de que não há nada a mais para ser dito.

    Ser cronista exige uma resposta. Preciso dizer algo. Mas aí também habita uma demanda filosófica: preciso mesmo? Por que dizer algo é dizer qualquer coisa, mas, no geral, também está atrelado ao fato de tecer opinião específica sobre fenômenos em curso, comumente criticando, negando ou apoiando. Mas o cronista é condutor de um gênero livre que nem é literatura, decerto, nem tampouco jornalismo. Não é colunismo social, definitivamente; é, talvez uma conversa de calçada numa cidade do interior do Nordeste onde nada acontece a não ser durante encontros, muitas vezes fortuitos, de velhos conhecidos, não necessariamente amigos ou parentes. Ali, numa calçada, sob um poste de luz amarela, se conversa sobre tudo, com opiniões diversas sobre qualquer assunto e sem a obrigação de comprovação teórica, embora as certezas sejam, sem dúvida, a grande valia dessa interação, por vezes, acaloradas.

    O cantor popular cunhou em nossas cabeças a maldita frase: “quem fala pouco saca tudo”, uma máxima antiga atrelada a muitos pensadores do passado. Acusam Sócrates de ter dito que “quanto mais você sabe, mais você percebe que nada sabe”. Jean-Jacques Rousseau disse que “a pessoa que sabe muito, sabe que ainda há muito mais a saber” e o genial Millôr Fernandes que “quem sabe tudo, é porque anda muito mal informado”.

    Para não ser injusto com os novos filósofos de YouTube, Mario Sergio Cortella lembra que “o conhecimento não é algo que nasce conosco, nem é algo que absorvemos isoladamente e nem é algo disponível se tivermos a cabeça fechada, ignorando a ‘bagagem’ de outras pessoas”. Como de fato, e é por isso que Edgar Morin, acertadamente, explica não ser possível viver fora do conhecimento após acessá-lo, no entanto, elabora que “o conhecimento para ser pertinente necessita de relações, ligações e religações às suas partes e àquilo que envolve e entrecruza a informação”. Ou seja, é necessário bagagem, leitura, vivência e muita parcimônia antes para se tecer uma opinião, sobretudo se esta for pública.

    Mas se expressar é um direito constitucional – reservado às limitações da lei. Então, dizer todo mundo pode dizer e como tem muita gente dizendo muito e com certeza de tudo, nesta crônica eu decidi que nada tenho a dizer.

  • Carol Melo, Caramelo 

    Eu que não sou afeito ao inatismo, mas tenho de concordar que algumas pessoas desenvolvem certas habilidades de maneira tão própria que parece mesmo ter nascido com um dom. Mas, para não confirmar minha contradição, apelo ao neurobiólogo chileno Humberto Maturana para defender que alcançar excelência tem a ver com amor, não esse amor romântico, mas aquele que motiva os indivíduos a se movimentarem no mundo promovendo fenômenos de beleza, de arte e transformação. Caroline Melo é um exemplo disso, a menina fenômeno da música popular brasileira de Mossoró para o Nordeste.

    A conheci menina, estagiária do Jornal de Fato, quando ela ainda fazia faculdade. Danada, como dizemos por aqui, o que quer dizer aguerrida e dona de uma personalidade muito específica. Olhar forte, questionadora e decidida. “Do nada” começou a mostrar que cantava e, não sei em que momento, foi inundada pelo espírito artístico. De olhos fechados, se permitiu acreditar em seu sonho, mas sonho é só mais uma palavra romântica, porque só ele não basta, e é nítido o poder que essa menina tem construído em torno de si.

    Obviamente, a carreira artística é uma dureza que pode maltratar, mas enquanto é possível se divertir, nada vira barreira. Longe de mim discursar certezas, mas me permito a hipótese de que Caroline Melo ainda está brincando de ser estrela e é por isso que nada a impede de crescer. E cresce como quem não se importa com o que falam, sem tropeçar nos astros, sem mudar a criança que a torna destaque na multidão de outros artistas que também lutam pelos holofotes. Da menina que conheci há muitos anos, só a confiança e a gentileza permanecem, de resto é tudo mais.

    É que quando Carol disse que queria cantar, ela cantou e não parou mais. E foi bacana acompanhar sua progressão vocal, a mudança em sua consistência muscular e seu amadurecimento enquanto profissional da música, que lhe confere segurança no comando do palco. Foi isso que a permitiu se destacar nas janelas, mas também a conquistar espaços próprios nos barzinhos e pequenos eventos. Ano passado, mais uma chave virou e ela foi uma das atrações no palco principal do Mossoró Cidade Junina, aplaudida por milhares de apaixonados pela boa música tradicional nordestina.

    Na última semana, pude ver Caroline abrir o show da lenda Flávio José e presenciar esse crescimento de que falei até aqui. Sem esforço ou exagero, sem personagem, caras ou bocas, ela cantou como quem sabe exatamente o que faz. Na medida. Por um momento, me confundi e não sabia se ela servia à plateia com seu trabalho ou se a plateia servia a ela com tanta entrega e participação. Uma simbiose de muito equilíbrio e beleza, acontecendo de maneira orgânica e verdadeira em uma dessas noites boas com sabor de chocolate e recheio de caramelo.

    JOSÉ DE PAIVA REBOUÇAS
    Jornalista – DRT/RN 01948
    @paiva_reboucas

  • Gurufim, de Arlete Mendes, fala de nascimento e morte do corpo feminino

    O movimento metamorfoseador que atravessa os nascimentos e as mortes do corpo feminino é o fio espiralar por qual ondula“Gurufim”,novo livro da professora paulista-cearense Arlete Mendes. Selecionada no Programa de Fomento da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo (ProAC), a obra que sai pela editora feminista Vicença busca ecoar, a partir de uma imersão no universo da própria autora, a presença de vozes multifacetadas de mulheres que duvidam até mesmo da sua condição de ser e estar num mundo corroído pela barbárie.

    Como ser mulher vivendo num país recorde de feminicídio e estupro? Como sentir prazer a partir de um corpo sentenciado antes mesmo de nascer? Como sentir o amor se este pode efetivamente matar? Como é “ser” num lugar em que se precisa ludibriar a todo instante o “não-ser”?  Inquietações como essas povoam os versos agudos da poeta paulistana-nordestina, afroindígena e periférica que mergulhada nos valores da ancestralidade para atribuir a sua poética um lugar de sonho, de desejo e de encontro contínuo entre passado, presente e futuro.

    Gurufim, palavra escolhida para nomear o livro de poemas, significa um velório popular em que há música, dança e canto, em homenagem ao morto. Regiane Cabral de Paiva, doutora em Letras, explica, contudo, que o próprio título-palavra transita em diferentes sentidos: pelo ritual da comunidade afro-brasileira, pela mitologia egípcia e pode estar presente no ritual do samba. “A interseção entre elas é a morte embalada pelo voo, pelo cantar e pelo cortejo. Nessa revoada, o 61º texto foi escolhido por Arlete Mendes como título do livro cuja anunciação dialoga com o eleitor sobre essa passagem pela vida e além vida por meio da poesia e, outras vezes, pela prosa, que de tão livre se torna poema”, escreve Regiane na apresentação do livro.

    A catarse de Arlete tem uma presença onírica marcante, mas sem deixar de lado a materialidade e a concretude da existência. “Há um brado que insufla contra os espaços de opressão, seja na esfera pública ou privada, escavando a partir da insistência sonora pequenas fissuras na realidade mortificadora. Dessas frestas surgem novas formas autogestadas no corpo da mulher periférica, que se recria como matéria viva, potencialmente expandido por e pela palavra”, diz Arlete Mendes. 

    Para as editoras da Vicença, as vozes ecoadas neste projeto falam a partir das camadas menos prestigiadas e trazem para o centro da ação a mulher, tanto pelo código canônico, quanto pelo código não letrado, que desde muito jovem aprende a elaborar cuidadosamente seu próximo passo, peão na linha de frente do xadrez humano, em que, a cada movimento, deve ser evitado o xeque-mate. “A partir do jogo simbólico entre ser-perecer, o livro traz para o embate estético, linguístico e filosófico a temática da morte, que apesar de ser um dos grandes temas da literatura universal e perpassar pela produção de incontáveis autores, é uma fonte de visitação contínua, quiçá inesgotável”, escreve o conselho editorial no posfácio.

    Sobre a autora
    Arlete Mendes nasceu em Embu das Artes, São Paulo. Filha de cearenses, reside atualmente no município de Cotia, na grande São Paulo. Com uma vasta atuação artístico-cultural, idealiza, junto ao coletivo de mulheres Vicença, a criação de uma editora independente: Vicença Editorial, que lança, agora em 2022, o livro Gurufim.

    JOSÉ DE PAIVA REBOUÇAS
    Jornalista – DRT/RN 01948
    @paiva_reboucas

  • Desigualdades educacionais

    A educação melhorou no Rio Grande do Norte. Diagnóstico realizado pela UFRN mostra que houve avanços no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) ao longo dos últimos 15 anos, bem como nos demais indicadores de permanência nos primeiros anos do ensino fundamental. No entanto, as desigualdades ainda são muitas e existem diversos outros desafios sérios a serem superados em todas as fases do ensino. Dividido em sete eixos, cada um com um resultado específico e autores diferentes, o Diagnóstico das Desigualdades Educacionais no Rio Grande do Norte apresenta uma síntese das condições educacionais no Estado a partir de um olhar temporal, espacial e institucional, visando subsidiar o planejamento de ações por gestores públicos e, ainda, produzir um debate público sobre a educação potiguar.

    O Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb), de 2019, indica que o desempenho geral do RN nos anos iniciais do ensino fundamental (1º ao 5º ano) situa-se abaixo da média brasileira, sendo um dos estados com os piores resultados gerais. Apenas quatro estados estão com desempenho igual ou abaixo do RN no Ideb 2019: Pará, Amapá, Maranhão e Sergipe.  Além disso, o cenário potiguar reflete insuficiência na aprendizagem em comparação à média brasileira. Considerando todas as esferas administrativas da educação (estadual, municipal, federal e privada), em 2017, por exemplo, apenas 44,4%  dos estudantes apresentavam conhecimentos adequados em Português.

    Os autores afirmam que ao  verificarem as taxas do Saeb por tipos de escolas,  foi possível constatar que apenas 35,4% dos alunos das instituições públicas apresentam a aprendizagem esperada, enquanto nas privadas esse valor sobe para 79,6%. No campo da matemática, o problema persiste e mostra que apenas 30,2% dos alunos do Estado apresentam o domínio esperado na disciplina. A desigualdade também é aprofundada pela disparidade entre a rede pública e privada, uma vez que 63,3% dos alunos de escola particular contam com aprendizagem adequada, enquanto o mesmo índice cai para 21,8% nas escolas públicas.

    Apesar das diferenças, tanto as escolas públicas quanto privadas do RN apresentam um nível de aprendizagem inferior à escala nacional e regional (Nordeste), inclusive, ao comparar os alunos potiguares com outros de posições socioeconômicas equivalentes dos outros estados. Contribuem para esse cenário, a elevada reprovação, a evasão e a significativa parcela de estudantes em situação de vulnerabilidade social, responsável por influenciar negativamente o processo de aprendizagem e resultar em problemas como a repetência. Com base nos dados do Inep 2020, o estudo calculou que haviam aproximadamente 15 mil crianças reprovadas e 2 mil abandonos no RN, consequências do  atraso escolar que decorre das adversidades sociais.

    A dificuldade se manifesta, principalmente, nos anos finais e no ensino médio, com 51% dos estudantes do sexo masculino com dois anos ou mais de atraso no 1º ano do ensino médio. Embora existam lacunas nos dados sobre aprendizagem em muitas escolas, o que leva à limitação na análise e compreensão do real quadro de aprendizagem dos alunos, os autores explicam que há estudos apontando o importante papel da gestão pública na melhoria deste e demais aspectos analisados sobre a educação. Consequentemente, a formulação e implementação  de políticas públicas se configuram como urgência no ensino.

    O estudo recomenda medidas que percorrem soluções como a análise educacional dos municípios, adoção de estratégias para identificar as causas da repetência, implementação de atividades de formação continuada de professores e incentivo à troca de experiências. Dentro desse cenário, alertam que é preciso priorizar o início da escolarização, uma vez que ela é a base fundamental do conhecimento e impacta nos anos seguintes da formação escolar.   Já para análise de desempenho na aprendizagem do RN, o diagnóstico sugere a aplicação de  estratégias de conscientização e mobilização das redes de ensino, a fim de reativar o Sistema Integrado de Monitoramento e Avaliação Institucional (Simais), utilizado pelo Governo Estadual entre 2017 e 2019. Mais do estudo pode ser encontrado no site ufrn.br.

  • Dois braços e duas pernas

    Quando nascemos, um a um, os seis filhos de Maria, faltava muita coisa, embora sobrasse tempo. Não havia instrução, não havia tanta alimentação, saúde ou lazer. Alguns de nós pendemos para o alcoolismo, outros para a ansiedade, para o medo de viver como pessoas iguais. Mas nascemos com dois braços, duas pernas, olhos saudáveis, cabeça razoavelmente boa e mazelas possíveis de conviver. Faltava comida, mas sobrava integridade, firmeza e pé no chão e é por isso que sentimos, mas não reclamamos, não matamos e não roubamos. É bem provável que tenhamos, este tempo todo, nos tornado carregadores de baldes, senso comum, manada para um sistema perverso e frio, mas nada disso foi suficiente para macular nossa vida de gente boa, de respeito e caridade.
     
    Enxada, chibanca, machado e peixeira foram as únicas tecnologias apresentadas a nós na infância inteira. Sem televisão e essas modernidades de hoje, conversamos entre nós por bastante tempo; brigamos, nos ausentamos e vivemos um pouco como bichos reparando muito e falando pouco. Talvez por isso tenhamos desenvolvido um senso de direção e uma comunicação não verbal deveras eficiente. Aprendemos a conviver em distâncias sem nunca estarmos separados, mesmo sem a necessidade de reafirmação de sentimentos ou compromissos. Entendemos a vida em família como um conceito orgânico bem definido e inseparável, entre nós e nossas gerações.
     
    De nossas fragilidades somos reféns e vítimas e elas não nos deixam seguir adiante como poderíamos. É verdade que muitos de nós não pretendiam seguir além do básico, embora tenhamos capacidade e qualificações morais. Infelizmente, a condição a que nos submetemos nos limitou a pensar pequeno, como se a grandeza fosse um pecado ou um motivo para negar as ambições. Confundimos, ou nos ensinaram a confundir, ambição com ganância, assessoria com servidão, política com depreciação. Vivemos isolados também desse mundo onde as farturas navegam e, ainda assim, superamos todas as nossas crises, internalizando parte delas para nunca mais.
     
    Repertório curto ou limitado, visão periférica, sensitividade. Distração entre religioso e profano, entre o Nordeste, o Norte e o Centro Oeste. Pedaços, retalhos, resquícios, quebra cabeça inconcluso, vida passando a 107 mil quilômetros por hora. Um dia após o outro, um sol, uma lua, um sol, uma lua, calendário desprezado sob uma cristaleira. Deixamos para o rádio o tempo e para o relógio as horas de trabalhar, de comer e dormir.
     
    Mas temos dois braços, duas pernas, saúde razoável, bom coração e o desejo de estar no mundo sem machucar ninguém, desde que não invadam nossos espaços nem tentem nos machucar. Não fazemos mal a ninguém que não nos faça mal e nossa casa está aberta para quem quiser chegar, independente de credo ou religião, de passado ou presente. Tendo respeito e prudência, está tudo certo. Tendo calor e humanidade, toda conversa é boa. Os dias são quentes e secos, o vento está ali só para constar, como a vida que atravessa as vidas e os planos da Chapada no rumo de esfriar os abastados e sortudos deste mundo. Nós não sentimos o bom desse sopro, mas sopramos juntos.

  • Se/bastião

    Apagou-se a última chama do tripé que construiu minha infância sertaneja. Foi-se de imediato numa circunstância peremptória. Foi sem saber que estava indo, sem saber que ia. Sem sofrer, suponho e espero, sem necessidade de olhar para trás. Deixou muito mais do que pessoas, deixou acontecimentos e memórias, mesmo sem precisar integrar qualquer elite, qualquer grupo social complexo além da própria família. Um tanto que o acompanhou na última caminhada ocupando as ruas e avenidas, interrompendo o trânsito e fazendo as pessoas referenciarem sua passagem. Não precisavam conhecê-lo, bastava olhar o movimento e reparar nos semblantes para ter certeza de que se tratava de alguém com muita importância.

    Era meu tio, um pouco pai. Silente e sorridente, o culpado pelo pouco bom humor que construí. Essa mania tola de apelidar os outros a partir de seu legado linguístico, um idioleto construído por ele e reproduzido por nós todos. Uma construção de limites, de espaços fronteiriços que não se encaixam em outro lugar senão em nossas cabeças ou dentro de nossas casas. Perspectiva inconsciente e de riquíssima tradição emergida na solidão do Brasil profundo. Este lugar particular que são vários, a depender da região, da localidade, da residência onde se habita.

    As pessoas perguntam sobre seu nome, mas não adianta porque não é simples explicar. Ele era exatamente como construía os outros, um sujeito de várias alcunhas e denominações. Sebastião, como o rei que ainda se espera ou como o santo guerreiro. Tião, como muitos sertanejos, Bastião, como uma “obra de fortificação constituída de um avançado para artilharia com dois flancos e duas faces ligadas às cortinas da fortaleza ou praça por dois dos seus lados; baluarte”, como diz o dicionário Oxford. Para a minha avó, Cezin(ho), mas não como diminutivo de César, o título concedido aos imperadores, mas apenas uma redução da primeira parte da palavra Sebastião. Uns o chamavam de Bastião, ela, como não queria chamá-lo de Sebas, o chamou de Cezin.

    Dessas circunstâncias sem esperar, ele foi e levou consigo um pedaço de todos nós, mas o que plantou vai brotar e frutificar, porque cresce como rama de árvore frondosa. Uma estrela que se apaga, mas que deixa sua luz brilhando por eras. Uma estrela no multiverso dessas sem pretensão de ser diferente ou maior ou melhor que outros astros, mas que se diferencia por existir ou ter existido. Uma referência primordial que desconstrói todos os mitos e pré-requisitos e devolve o sentimento original de estar no mundo, não para acontecimentos extraordinários, mas como movimento cotidiano e orgânico da vida. Alguém que teve mais importância que qualquer líder ou artista, que qualquer rei ou empresário; que fez de sua invisibilidade um modo de viver e sobreviver às novas exigências do mundo, sendo apenas quem somos e vivendo somente como devemos viver, vivendo.

  • À sombra da parede às 11h

    Os becos e vielas que me atravessam parecem não ter saída, ainda assim eu sigo como numa simulação inconstante. Cachorros latindo evocam a madrugada, o sol a pino queima em cada fresta e tudo o que eu faço é passar a mão onde dói na tentativa fracassada de resfriar o que arde. A mão na pele quente me lembra que apesar de parecer um sonho, suponho estar vivo, ao que me conste. 

    Para frente ou para trás os caminhos são os mesmos, mas voltar é reviver o que não suporto. Há uma sombra que indica minha presença como se eu pudesse estar inteiro também no passado, embora em círculos incompletos. Mas a sombra não se reproduz e aí é onde tudo se desalinha. A sombra é ausência de réstia e de sol, de calor e vida, ainda que denote a presença de um corpo, uma massa que sempre se moverá na rotação da esfera.

    Aqui os passos são pesados e lentos, mas não há lama afundando meus pés, apenas o peso enorme de minha cabeça. Dói, suponho, mas a dor mesmo não é latente, é só uma suposição. Dói de um jeito distinto do que se considera dor nociceptiva, inflamatória, neuropática, mas também não parece funcional. É um espectro de dor que se alastra nos ombros e circula os olhos, mesmo quando fechados.

    Daquela canção, nem a música entrega o sentimento contido. A letra desvia-se do reto pensamento construído, a melodia para antes de confirmar a agonia da coincidência. Sensação fragilizada, embocadura desigual. Tenho impressão de que nenhuma canção é para mim, mas há sinais que parecem sair de rádios confusos atrás das paredes velhas. Uma harmonia misturando-se a outra apressando as sombras que se esgueira à retaguarda de meu destino.

    Flores e musgos nos cantos do meio fio testam a resistência do concreto, mas são tão frágeis quanto a minha segurança. Um vento a mais e tudo dissipa no ar. O esgoto cheio de química percorre o pé da calçada e seu material orgânico expele um odor conhecido. Nada que é humano me é estranho.

    Não há fim nesta caminhada, embora os becos pareçam sempre que vão acabar. No relógio sempre são onze horas e uma sirene lembra que é momento da vida fumar outro cigarro. Silêncio profundo cortado em lembranças. Moscas zumbindo momentos distintos e o sol mais quente sobre o Equador. As pernas cada vez mais pesadas e o sapato queimando. Sapatos velhos manchados de suor e caliça. Um cheiro de couro envelhecido exala um perfume peculiar. 

    Sento e me encosto na parede. O mormaço me obriga a respirar devagar. Quanto menos movimentos, menos angústia. Meus pés descansam um instante, mas ainda parecem machucados, embora siga sem entender que tipo de dor lateja. Tenho forças para caminhar e para ficar sentado, não há diferença em ir ou ficar. Eu fico e minha cabeça vai, mas como num carrossel, volta às sombras e me traz de lá a poeira de um tempo. Meus olhos doem, minha cabeça dói, minhas mãos estufam pelos dedos e eu não posso fazer nada, eu não sei fazer nada a não ser observar e pensar se sigo ou durmo.

  • Saudades

    Saudade é negócio doído, mas nunca é uma só. A saudade é um nó que nos maltrata sem pena, quebra a regra, muda a cena, quando o negócio é amor. A vontade de lembrar cada instante, cada hora como se fosse agora o vivido anteontem. Aquele querer danado de ficar perto, apertado, de adular quem nos adula. Essa é saudade mais dada, pois de tanto ser lembrada é a que mais nos anula.

    Mas existe uma saudade que é bem mais malfazeja, uma que chega e lampeja clareando as lembranças, marca o passo, traça a dança e nos remove no tempo. É reflexo de um momento que estava bem guardado, tão sumido, amufambado que assusta o pensamento. Basta uma música, um cheiro, um gostinho de tempero pra tudo voltar com força, joga a gente numa poça de recordação perene.

    Saudade mexida é de quem foi pra não voltar. Uma saudade que dá de saber que não tem jeito, chega dói aqui no peito só de tocar na conversa, essa coisa que atravessa, mas não sai do outro lado. O negócio é agradecer a lembrança que foi boa e não deixar a pessoa jamais ser esquecida. Não adianta lamentar, resmungar, tentar efeito, da vida esse é o defeito que não tem quem organize.

    Existe ainda a saudade que é feita de perigo, essa tem a ver consigo que se esquece de se ver. Repara tanto o presente que não atina, não sente, o que foi acontecendo. Vai guiado e pendendo pruma vontade alheia, atolado na areia de uma vida mal corrida, segue esquecendo da vida que é sua por direito. Essa saudade destrói, mata a vontade, corrói a imagem no espelho, aí só com bom conselho, muita dobra de joelho talvez se possa dar jeito.

    Tem também a dependência que não é uma saudade, mas carrega a maldade de um querer que domina. Perigosa cafeína que nos guia pro errado, esse troço malfadado que nos torna tão carentes de querelas recorrentes que só nos leva pro mal. Essa vontade malvada precisa ser combatida com boldo ou criolina, pois se ela nos domina é sofrência infernal.

    Por fim, no último exemplo, a saudade equivocada. Essa é mais despudorada, pois pode ser resolvida. Saudade de ir à casa dos pais que moram na esquina, de falar com a menina pela rede social, de dizer ao pessoal que hoje se sai à rua, seca o balde, bebe a lua pra esquecer os problemas. Dar um telefonema pra falar com um amigo, rir de empinar o umbigo lembrando desimportâncias, ultrapassando as instâncias de estar sem estar sendo, passo a passo revivendo, resgatando e removendo as saudades desta vida.

  • Paulo freire, o mamão e a galinha

    A vida de Paulo Freire virou um pesadelo desde a aposentadoria de seu pai, o militar Themístocles Freire, e piora com a suspensão do apoio financeiro de seu tio Rodovalho, comerciante de secos e molhados que vê seus negócios afundarem a partir de 1929 com a quebra da bolsa de valores de Nova Iorque. A crise da família Freire que sai da classe média para a pobreza vai piorando até pelo menos 1936, período que ficou marcado na memória de Paulo como uma cicatriz que nunca parou de doer. Em “Cartas a Cristina, Reflexão sobre minha vida e minha práxis” ele dedica o primeiro capítulo especificamente para falar de sua maior angústia e sofrimento: a de passar fome, situação que alcança seu estágio mais agudo em Jaboatão dos Guararapes, lugar que teve, para ele, “sabor de dor”.

    “A nossa fome foi a que chegava sem pedir licença, a que se instala e se acomoda e vai ficando sem tempo certo para se despedir. Fome que, se não amenizada, como foi a nossa, vai tomando o corpo da gente, fazendo dele, às vezes, uma escultura arestosa, angulosa. Vai afinando as pernas, os braços, os dedos. Vai escavando as órbitas em que os olhos quase se perdem, como era a fome mais dura de muitos companheiros nossos e continua sendo a fome de milhões de brasileiros e brasileiras que dela morrem anualmente”, relata Paulo Freire.
    Ele lembra que tinha ciência das precárias condições financeiras da família mas não tinha como ajudá-la aos 11 anos de idade. “Assim como meu pai não podia prescindir da gravata, que, mais do que pura expressão da moda masculina, era representação de classe, não podia permitir que eu, por exemplo, trabalhasse na feira semanal, carregando pacotes ou fosse serviçal de alguma casa”, pondera Paulo sobre a necessidade da família de, apesar das angústias, ainda tentar manter um status que não mais lhe pertencia.

    Segundo Paulo, a coisa piorou depois da morte do pai, mas é com mágoa que ele conta o que viu sofrer sua mãe, dona Tudinha, para não deixar faltar o mínimo para mantê-los de pé. “Era, por exemplo, acompanhando-a, que eu pude ver com que rosto de vergonha, de intimidação ela ficava quando o sujeito da venda – minha mãe ainda não tinha posto o corpo inteiro na porta – gritava por trás do balcão que não venderia a ela porque a dívida já era grande e que ele não acrescentaria mais. Ela nem balbuciava um ‘desculpe’ ou ‘muito obrigada’, voltava-se para rua e saía e eu atrás, sem comentários também. Essa coisa me marcou profundamente”, lembra.

    Neste período, restou a Paulo e seus irmãos fazerem incursões proibidas nos quintais alheios de sua rua e bairro em busca de alimento nos pomares e árvores frutíferas. O que ele chamou de “geografia dos quintais” era, na verdade, a geografia da fome que agora constituía sua nova forma de olhar o mundo e a natureza. Diferente de quando ele, na condição de sujeito alimentado, podia vislumbrar os fenômenos e seres naturais como parte de sua constituição como sujeito da vida, pessoa humana na construção de sua autonomia individual, agora suas incursões tinham o propósito único de vencer suas necessidades primárias. De menino bem criado, Paulo era agora um faminto delinquente que agia com o único intuito de matar o que lhe matava: a fome.

    “Conhecíamos os lugares mais seguros, onde, cuidadosamente, entre folhas secas, acolhedoras, mornas, escondíamos as bananas que tirávamos ainda ‘em vez’ (amadurecendo) e que assim ‘agasalhadas’ amadureciam ‘resguardadas’ de outras fomes, como, sobretudo, do ‘direito de propriedade’ dos donos dos quintais”, conta Paulo em suas Cartas a Cristina.

    Um desses donos de quintais, prossegue ele, o flagrou um dia, manhã cedo, tentando furtar um mamão de seu quintal. “Apareceu inesperadamente em frente a mim, sem que eu tivesse tido a oportunidade de fugir. Devo ter empalidecido. A surpresa me desconcertou. Não sabia o que fazer de minhas mãos trêmulas, das quais mecanicamente tombou o mamão. Não sabia o que fazer do corpo todo – se ficava empertigado, se ficava relaxado, em face da figura sisuda e rígida, toda ela expressão de uma dura censura a meu ato. Apanhando a fruta, tão necessária a mim naquele instante, de forma significativamente possessiva, o homem me fez um sermão moralista que não tinha nada que ver com minha fome. Sem dizer palavra – sim, não, desculpe ou até logo -, deixei o quintal e fui andando sumido, diminuído, achatado, para casa, metido no mais fundo de mim mesmo. O que eu queria naquele instante era um lugar em que nem eu mesmo pudesse me ver”, relata.

    Outra recordação de que Paulo chama de “atentados”, realizados por ele e seus irmãos, aconteceu numa manhã de domingo por volta das 11h da manhã. Tinham entretido o estômago com um pouco de café e um pão sem manteiga, quando apareceu, no quintal da velha casa em Jaboatão, uma galinha que, possivelmente, pertencia ao vizinho. A galiforme que ciscava em busca de algum inseto incorreu no erro de se aproximar dos meninos que a agarraram e a sacrificaram imediatamente.

    “Minha mãe chegou em seguida. Nenhuma pergunta. Os quatro se olharam entre si e olharam a galinha já morta nas mãos de um de nós. Hoje, tantos anos distantes daquela manhã, imagino o conflito que deve ter vivido minha mãe, cristã católica, enquanto nos olhava silenciosa e atônita. A sua alternativa deve ter estado entre repreender-nos severamente, devolvendo em seguida ao vizinho com desculpas o corpo ainda quente de sua galinha pedrês ou preparar com ela um singular almoço”, disse Paulo.

    Mas, diante da situação, venceu a fome (Paulo chama de “bom-senso”). Dona Tudinha, no mesmo silêncio que flagrou o delito, entrou na cozinha e foi depenar e preparar o animal abatido, “num trabalho que há muito não fazia”, segundo Paulo. “Nosso almoço, horas depois, naquele domingo, decorreu num tempo sem palavras. É possível que sentíssemos um certo gosto de remorso entre os temperos que condimentavam a galinha pedrês do nosso vizinho. Ali, sobre os pratos, aguçando a nossa fome, ela deveria ter sido, também, para nós, uma ‘presença’ acusadora do que nos teria parecido um pecado ou um delito contra a propriedade privada”, acrescenta.

    No dia seguinte, supõe Freire, ao perceber o desfalque em seu galinheiro, o vizinho deve ter esbravejado contra o ladrão acusando, possivelmente, pessoas pobres da região. “Jamais poderia haver pensado que perto, muito perto dele, estavam os autores daquele sumiço”, completa Paulo Freire.

  • Sonhar é preciso

    “É hora de abandonar o hábito ancestral de competir em vez de colaborar, de acumular em vez de compartilhar”. Com essa frase, o biólogo e neurocientista Sidarta Ribeiro abre o último parágrafo de um artigo de opinião amplamente difundido pela conceituada revista norte-americana Time. O pesquisador e vice-diretor do Instituto do Cérebro (ICe), da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), ganhou notoriedade internacional nas ciências estudando os efeitos do sono, dos sonhos e das memórias. No artigo Why we can’t ignore our dreams, ele discute a importância de voltar ao passado para compreender o presente e mudar a maneira de olhar a vida e seus efeitos na natureza.

    Sidarta começa lembrando dos sonhos premonitórios de Júlio César e sua esposa, Calpúrnia. O imperador romano sonhou voando alto a ponto de se encontrar com o deus Júpiter. Já sua esposa viu no sonho que ele seria esfaqueado e pediu para que não saísse de casa no dia seguinte. “Ambos os sonhos eram precognitivos: enquanto a subida ao céu para estar com o rei dos deuses era uma metáfora da morte de César e subsequente divinização, as imagens concretas do sonho de sua esposa previam o futuro em detalhes”, conta Ribeiro no artigo.

    Ao trazer essa referência, o neurocientista desafia a ordem vigente da ciência ao defender que os sonhos podem ser compreendidos além de uma experiência de imaginação do inconsciente, assim como pensam a psicanálise e a maioria dos líderes espirituais. Em seu texto, Sidarta lembra que a noção de que os sonhos podiam prever o futuro era amplamente aceita na Antiguidade, como visto em alguns dos primeiros registros escritos da Mesopotâmia, no Império Assírio e até no sonho de São José, que previu o risco que corria o menino Jesus de ser morto pelo rei Herodes. 

    O pesquisador reforça que a maioria, senão todas as religiões, considera o sonho um portal para a revelação divina e é preciso compreender a jornada psicológica feita por ancestrais para justificar essas crenças fantásticas e descobrir se é possível conciliar os sonhos com a visão de mundo materialista e ainda saber por que isso importaria. Mas, para chegar a uma resposta adequada, Sidarta lembra que é preciso compreender as funções biológicas do sono.

    “O sono desempenha muitos papéis diferentes em nossos corpos, como a estimulação da síntese de proteínas, liberação hormonal, desintoxicação e processamento da memória. Durante o sono, as memórias são reproduzidas por meio da reverberação de padrões de atividade neuronal. O sono tem diferentes estágios. O sono de ondas lentas processa memórias de pessoas, animais, objetos, lugares e eventos. O sono REM processa memórias emocionais, como lidar com um incidente frustrante, e memórias de procedimento, como andar de bicicleta”, explica Sidarta, reforçando que a intensidade e a complexidade da experiência do sonho atingem o pico durante o sono REM (do inglês: Rapid Eye Movement: Movimento Rápido dos Olhos).

    O cuidado com o sonho, segundo Ribeiro, começou a se desenvolver já no Paleolítico Superior, quando nossos ancestrais sonharam com inovações empáticas e transformadoras. No entanto, esse comportamento começou a mudar nos últimos cinco séculos, a partir do estabelecimento do capitalismo no mundo. E, mesmo voltando a ter repercussão com Freud e Jung, os sonhos nunca mais recuperaram sua importância social, perdendo inteiramente sua relevância de grupo. 

    “Com todos os estímulos que invadiram nossas vidas, a oportunidade de dormir e sonhar está cada vez mais ameaçada. A perda de sono pode levar ao déficit de memória, alterações de humor, depressão, obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares e riscos de doença de Alzheimer. A perda de sonhos, por sua vez, pode levar a uma profunda falta de percepção de nossos desejos, medos e desafios, bem como a uma incapacidade de avaliar as consequências de nossas ações”, alerta.

    Para o pesquisador, uma atualização cultural é urgentemente necessária, tanto por parte dos líderes políticos como dos cidadãos comuns, pois é hora de reaprender a arte de sonhar com os xamãs nativos que alertam sobre a iminente ‘queda do céu’ causada pelas ações predatórias imprudentes. “Desigualdade, intolerância, mudança climática e a pandemia tornam muito clara a necessidade de uma ação conjunta. A segurança só pode vir de um sonho compartilhado sobre um futuro mais inclusivo. Se quisermos ficar por aqui, é vital entender o que são os sonhos para o bem comum e reaprender a arte de compartilhá-los com nossa família, amigos e vizinhos planetários”, completou Sidarta Ribeiro.