Sobre

Dois braços e duas pernas

Quando nascemos, um a um, os seis filhos de Maria, faltava muita coisa, embora sobrasse tempo. Não havia instrução, não havia tanta alimentação, saúde ou lazer. Alguns de nós pendemos para o alcoolismo, outros para a ansiedade, para o medo de viver como pessoas iguais. Mas nascemos com dois braços, duas pernas, olhos saudáveis, cabeça razoavelmente boa e mazelas possíveis de conviver. Faltava comida, mas sobrava integridade, firmeza e pé no chão e é por isso que sentimos, mas não reclamamos, não matamos e não roubamos. É bem provável que tenhamos, este tempo todo, nos tornado carregadores de baldes, senso comum, manada para um sistema perverso e frio, mas nada disso foi suficiente para macular nossa vida de gente boa, de respeito e caridade.
 
Enxada, chibanca, machado e peixeira foram as únicas tecnologias apresentadas a nós na infância inteira. Sem televisão e essas modernidades de hoje, conversamos entre nós por bastante tempo; brigamos, nos ausentamos e vivemos um pouco como bichos reparando muito e falando pouco. Talvez por isso tenhamos desenvolvido um senso de direção e uma comunicação não verbal deveras eficiente. Aprendemos a conviver em distâncias sem nunca estarmos separados, mesmo sem a necessidade de reafirmação de sentimentos ou compromissos. Entendemos a vida em família como um conceito orgânico bem definido e inseparável, entre nós e nossas gerações.
 
De nossas fragilidades somos reféns e vítimas e elas não nos deixam seguir adiante como poderíamos. É verdade que muitos de nós não pretendiam seguir além do básico, embora tenhamos capacidade e qualificações morais. Infelizmente, a condição a que nos submetemos nos limitou a pensar pequeno, como se a grandeza fosse um pecado ou um motivo para negar as ambições. Confundimos, ou nos ensinaram a confundir, ambição com ganância, assessoria com servidão, política com depreciação. Vivemos isolados também desse mundo onde as farturas navegam e, ainda assim, superamos todas as nossas crises, internalizando parte delas para nunca mais.
 
Repertório curto ou limitado, visão periférica, sensitividade. Distração entre religioso e profano, entre o Nordeste, o Norte e o Centro Oeste. Pedaços, retalhos, resquícios, quebra cabeça inconcluso, vida passando a 107 mil quilômetros por hora. Um dia após o outro, um sol, uma lua, um sol, uma lua, calendário desprezado sob uma cristaleira. Deixamos para o rádio o tempo e para o relógio as horas de trabalhar, de comer e dormir.
 
Mas temos dois braços, duas pernas, saúde razoável, bom coração e o desejo de estar no mundo sem machucar ninguém, desde que não invadam nossos espaços nem tentem nos machucar. Não fazemos mal a ninguém que não nos faça mal e nossa casa está aberta para quem quiser chegar, independente de credo ou religião, de passado ou presente. Tendo respeito e prudência, está tudo certo. Tendo calor e humanidade, toda conversa é boa. Os dias são quentes e secos, o vento está ali só para constar, como a vida que atravessa as vidas e os planos da Chapada no rumo de esfriar os abastados e sortudos deste mundo. Nós não sentimos o bom desse sopro, mas sopramos juntos.

Escrito por Paiva Rebouças

Humor: bate-papo com o Pãozinho de açucar

Sem medo de ser feliz