Sobre

Se/bastião

Apagou-se a última chama do tripé que construiu minha infância sertaneja. Foi-se de imediato numa circunstância peremptória. Foi sem saber que estava indo, sem saber que ia. Sem sofrer, suponho e espero, sem necessidade de olhar para trás. Deixou muito mais do que pessoas, deixou acontecimentos e memórias, mesmo sem precisar integrar qualquer elite, qualquer grupo social complexo além da própria família. Um tanto que o acompanhou na última caminhada ocupando as ruas e avenidas, interrompendo o trânsito e fazendo as pessoas referenciarem sua passagem. Não precisavam conhecê-lo, bastava olhar o movimento e reparar nos semblantes para ter certeza de que se tratava de alguém com muita importância.

Era meu tio, um pouco pai. Silente e sorridente, o culpado pelo pouco bom humor que construí. Essa mania tola de apelidar os outros a partir de seu legado linguístico, um idioleto construído por ele e reproduzido por nós todos. Uma construção de limites, de espaços fronteiriços que não se encaixam em outro lugar senão em nossas cabeças ou dentro de nossas casas. Perspectiva inconsciente e de riquíssima tradição emergida na solidão do Brasil profundo. Este lugar particular que são vários, a depender da região, da localidade, da residência onde se habita.

As pessoas perguntam sobre seu nome, mas não adianta porque não é simples explicar. Ele era exatamente como construía os outros, um sujeito de várias alcunhas e denominações. Sebastião, como o rei que ainda se espera ou como o santo guerreiro. Tião, como muitos sertanejos, Bastião, como uma “obra de fortificação constituída de um avançado para artilharia com dois flancos e duas faces ligadas às cortinas da fortaleza ou praça por dois dos seus lados; baluarte”, como diz o dicionário Oxford. Para a minha avó, Cezin(ho), mas não como diminutivo de César, o título concedido aos imperadores, mas apenas uma redução da primeira parte da palavra Sebastião. Uns o chamavam de Bastião, ela, como não queria chamá-lo de Sebas, o chamou de Cezin.

Dessas circunstâncias sem esperar, ele foi e levou consigo um pedaço de todos nós, mas o que plantou vai brotar e frutificar, porque cresce como rama de árvore frondosa. Uma estrela que se apaga, mas que deixa sua luz brilhando por eras. Uma estrela no multiverso dessas sem pretensão de ser diferente ou maior ou melhor que outros astros, mas que se diferencia por existir ou ter existido. Uma referência primordial que desconstrói todos os mitos e pré-requisitos e devolve o sentimento original de estar no mundo, não para acontecimentos extraordinários, mas como movimento cotidiano e orgânico da vida. Alguém que teve mais importância que qualquer líder ou artista, que qualquer rei ou empresário; que fez de sua invisibilidade um modo de viver e sobreviver às novas exigências do mundo, sendo apenas quem somos e vivendo somente como devemos viver, vivendo.

Escrito por Paiva Rebouças

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