Sobre

O autor e a criatura

Por Natália Chagas

O autor considerou a morte necessária. Depois de refletir, decidiu matar a mocinha que se casaria com o notório da sociedade, rico, bonito e com futuro promissor. Este proeminente da cidadezinha de interior trazia a imposição da procriação. Era necessário uma mulher. Os homens, entre seus planos e projeções futuras, necessitam das mulheres. Não podem seguir sem elas. São imprescindíveis em percepções sociais e concepções de descendentes. Um advogado daquela estirpe não ousaria deixar de perpetuar sua espécie. Era tão grande a veneração pelo filho daquela pela cidade que nem importaria qual seria o ventre que carregaria seu fruto.

O autor, entretanto, não quis colocá-lo a mercê de uma doidivanas. Ela deveria merecê-lo. Então criou esta estupenda fêmea de dotes importantes para que houvesse uma casa limpa e acolhedora para onde o herói retornaria, com comida que o satisfaria, modos que não o envergonharia perante a sociedade e atraente aos olhos. Ela se chamaria Rosa, como a maioria dos personagens femininos de seus livros.

No meio do processo solitário que a escrita desenvolve, o autor resolveu dar uma volta para espairecer e desenvolver melhor a criatividade em como matá-la. Seria um acidente infeliz a melhor saída? Um envenenamento de uma invejosa? Ou um trauma craniano decorrente das insistentes surras que o marido sentia a responsabilidade de lhe dar para que ela aprendesse? Todas ideias válidas para o autor que já tinha decretado a morte da criatura.

Sentou-se em um boteco claramente afeito a confrarias masculinas ou companhias remuneradas, pediu uma cerveja, olhou no entorno e observava bêbados interagirem em conversas futebolísticas ou amaldiçoando suas esposas e filhos. Achou tudo normal e foi para seus pensamentos.

Com olhar longe e projetando dentro de sua mente as possibilidades das cenas seguintes do livro, teve destruído o seu foco ao ver passar uma criatura deslumbrante para dentro do bar com pernas longas, ombros largos e seios abundantes. Tinha um olhar profundo e triste, traços fortes com batom vermelho bastante chamativo em seus lábios grossos. Sua longa cabeleira era negra e bem cuidada.

O autor se sentiu deslumbrado por aquela criatura que não parecia real. Ele pensava: “Que gostosa! Que peitos, que bunda! Ai, que delícia ter essas pernas longas me abraçando!” Em cima de seu salto, aquela maravilha sorria para todos, inclinou-se no balcão colocando os dois cotovelos como apoiadores e arrebitando, levemente, o traseiro, chamando a atenção e silenciando toda a confraria. Pediu um campari e se manteve na mesma posição por uns minutos após alguns goles.

Percebendo o silêncio no entorno, virou-se mantendo os cotovelos como apoiadores do seu corpo no balcão mas esboçando um sorriso que fazia até o mais sisudo dos homens relaxar. O autor se sentia nervoso com tantos homens que aproveitavam daquele encanto. Seu ímpeto o levou até o balcão pagar o campari pedido, olhar nos olhos daquela imposição da natureza e chamar:

    — Quer beber comigo?

Sem pestanejar, a resposta veio em forma de aceno. Atravessaram a rua, em um restaurante italiano e se sentaram. Sem nada perguntar, o autor pediu um vinho da casa e um prato de espaguete à bolonhesa. Se olhavam com cuidado enquanto ele observava o cruzar de pernas bem à sua frente disparando faíscas dentro dele.

Por cima da toalha quadriculada, as mãos longas com unhas vermelhas chamavam atenção do autor pelo tamanho ao brincar com a haste da taça. Subindo e descendo até o cálice, a imaginação do autor era conectada à sua libido o enfeitiçando a tal modo que nenhuma pergunta lhe vinha à cabeça. Ansiava por acabar a refeição para a sobremesa. O silêncio foi quebrado com uma pergunta dos lábios pintados de vermelho:

    — Você sabe sobre mim, não é mesmo?

    — O que sobre você?

    — O que eu sou.

    — Não preciso saber.

    — Não gosto de surpresas. Gosto de tudo bem claro.

O autor achou uma bobagem toda aquela conversa e não mais respondeu. Sabia o que queria ter naquele momento e isso era o que interessava.

Terminando a comida e vinho, ele decretou: “- Vamos!”.

 Ao abrir a porta da sua pequena casa, um quarto e sala que abrigava bem sua solidão, ordenou a criatura a sentar-se e foi direto pegando sua garrafa de cachaça acomodada ao lado de sua máquina de escrever. Assim como a cachaça, sua máquina de escrever estampava a idolatria de uma juventude vivida e não voltaria mais.

A criatura observou todo o espaço vazio de fotos e lembranças do passado. Virou-se para o escritor e disse:

    — Você escreve?

    — Sim, sou escritor.

    — Da vida real ou da inventada?

    — Escrevo romances. Tudo inventado.

    — Deve ser mais fácil do que a vida real, menos pesado, né?

    — Como assim?

    — Pelo jeito, você não se apega muito, não é mesmo? Ossos do ofício? Virar página da vida não é tão fácil como papel.

    — Estranho você achar que entende de livros.

    — Não entendo de livros, entendo da vida. Não acredito que você escreva sobre o que não sabe. E você sabe desapegar, desfazer das coisas… das pessoas… Viver a ausência parece presente em sua casa.

    — Quer me ensinar o que não sabe.

    — Não, não. Ensinar é muito difícil. Talvez eu tenha só uma visão diferente que você. Eu sei que vidas são muitas e cada um escolhe o que quer. E você escolhe a vida dos seus personagens e a sua, e na vida real, que é a que eu vivo, vejo as pessoas e como elas são. E você é só por algum motivo. Mas uma coisa eu sei, todos os motivos da vida são escolhas nossas, às vezes não gostamos das consequências, mas acabamos herdando o resultado. É isso a vida: escolhas e consequências.   

Por um minuto, o escritor olhou a cachaça em suas mãos e reviveu em sua mente o último espancamento que deu em Rosinha. Mulher malvada que o abandonou em seguida, não deixou nem rastro para ele procurar por ela ou os dois filhos. As lágrimas invadiram seus olhos sem lhe pedir permissão. Disparou para a criatura:

    — Tome um dinheiro pelo seu tempo e vá embora.

Sem entender, pegou o dinheiro, colocou na bolsa e saiu.

O escritor sentou em frente à máquina de escrever, tomou um gole de cachaça, limpou os olhos marejados e disse:

    — Desta vez, Rosinha, será diferente. Vou lhe salvar!

O GAROTO DO SONHO ETERNO