Catal, a capital do estado, chamada carinhosamente de “A Noiva do Sal”, hoje vive em clima de medo, tamanha a violência dos últimos meses. As pessoas estão evitando as saídas durante à noite, e se saem, é por uma urgência urgentíssima. Com ruas e avenidas desertas nas primeiras horas das noites, bares, restaurantes e shoppings, por medida de segurança — amplamente divulgado na impressa local —, resolveram encurtar o horário de funcionamento. Os políticos da taba acham isso um grande exagero. “Não é pra tanto”, “Absurdo o que estamos vivendo”, “A noite catalense não pode continuar parada. Comerciantes estão à míngua”, discorrem nossos deputados na tribuna da Assembleia Legislativa. Os parlamentares não poupam o governo do professor Átila Mezêra, exigem providências rápidas. Em contrapartida, os auxiliares da área de segurança de Átila orientam há meses como os cidadãos e cidadãs devem agir à abordagem da bandidagem: “Não reaja”. Um grande tutorial.
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— Padre Almir, eu pequei.
— Pode falar, meu filho. Conte seus pecados.
Jessé começou do ponto em que tudo desandou em sua vida. Na penumbra do confessionário, não notou o vigário arregalando os olhos com o que acabara de ouvir, do dia mais triste e trágico da sua vida até o momento.
— Eu sei o porquê de tanta ira, reconheço meus pecados e…
— Crimes, Jessé. Você é um criminoso, Jessé?! — o pároco Almir interrompe Jessé. Estarrecido com as revelações que acabara de ouvir.
— Não pude deixar de lado o que aconteceu. Não podia. Não posso. Vou até o fim — desabafa Jessé.
— Você não pode, amigo. Não pode e não deve. Pare com isso enquanto há escapatória. O que faço agora? O que farei agora? —Almir continua atônito com a confissão.
O fiel e amigo fala de como tudo tem acontecido. Detalha como arrancou os dedos, furou os olhos e matou Élcio Silva, um dos participantes do crime contra Amanda. Da fuga da Vila Muriçoca com uma canoa pelo rio Pogenti. Da fábrica de gelo e a morte do vigia Aluízio Zambeta.
— Sua penitência é parar, e se não acabar com isso, nem sei o que será de você, o que poderá sofrer pelos seus atos… Desastroso, Jessé, não tem cabimento. Você se transformou em um assassino. Assassinos não merecem perdão. Não há penitência por tamanho absurdo — encerra o padre Almir.
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— Padre Almir, eu pequei!, diz Amanda.
— Conte-me o seu pecado, minha filha.
— Fiquei com raiva do meu marido. Aliás, estou com ódio dele.
— Por que, minha filha?
— Ele me esconde coisas, omite assuntos os quais mereço ciência.
— Como o quê, Amanda? Jessé sempre se mostrou tão leal…
— Deixando de lado sua amizade com ele, o senhor acha que algo que vale 20 milhões pode mudar as pessoas?
— Amanda, os que seguem as palavras de Cristo não trilham os caminhos da cobiça, de desprezo com a verdade. Em Isaías 64:6, diz que “todos nós nos tornamos impuros, todas as nossas boas ações são como trapos sujos. Somos como folhas secas; e os nossos pecados, como uma ventania, nos carregam para longe”. Não estou dizendo que seja isso neste caso.
Padre Almir franze a testa, faz uma cara de quem acaba de vacilar — sentiu que dera combustível à desconfiança de Amanda.
— Continue, minha filha!
— Como ele não dividiu comigo isso, padre? E veja o senhor que eu faço parte disso tudo, desde o nascimento desse projeto.
Ela discorre sobre o empreendimento que Jessé está executando paralelo ao que desenvolve na comunidade. A concepção desse projeto, supostamente negociado por um valor considerável com uma multinacional, foi do casal. Por isso a decepção da esposa. Por isso mesmo foi falar com o padre Almir. Acha que isso está, inclusive, atrapalhando sua vida conjugal. Aliás, foi o padre Almir que substituiu Jessé quando ele resolveu largar a batina. A amizade deles é antiga. Isso a deixa mais segura.
— Seu marido não estaria querendo fazer-lhe uma surpresa, minha filha?
— Confesso que eu não sei, padre. Uma surpresa que vai render 20 milhões, padre?
— Então você acha que ele poderia realmente enganar você?
— O pior é que eu não acho nada, padre! — finaliza Amanda, enquanto levanta-se. Em silêncio, retira levemente com as pontas dos dedos a cortina que cobre uma treliça, na tentativa de ver o rosto do padre Almir — “queria ver a reação dele” — pensa. Entretanto, a penumbra não permite.
— Por que você não conversa com ele sobre esse assunto? — encerra o pároco, fazendo um sinal da cruz, recomendando um pai-nosso e três ave-marias à fiel.
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— Será possível que a gente não tem um dia de sossego nessa delegacia? — o investigador André Antunes grita enquanto esmurra a mesa. — Não bastasse a onda de violência que se abateu sobre a cidade, agora isso?
Entre papéis espalhados pelo soco na mesa, pega a foto de José Cirino, diácono que ajudava o padre Almir nas missas dominicais, na matriz de Nossa Senhora da Penha, localizada no Centro. Acabara de ser assassinado em um suposto latrocínio. No mural, fixado na parede à sua frente, há várias fotos, marcações e escritos criando uma linha com diversas direções. Constam fotos de dois acólitos ligados ao aos padres Almir e ao bispo Gilberto Benício, que foram assassinados recentemente.
— Que inferno! — reclama André enquanto prende a foto de José Cirino no quadro que já se transformou em uma galeria de imagens.