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Sonhar é preciso

“É hora de abandonar o hábito ancestral de competir em vez de colaborar, de acumular em vez de compartilhar”. Com essa frase, o biólogo e neurocientista Sidarta Ribeiro abre o último parágrafo de um artigo de opinião amplamente difundido pela conceituada revista norte-americana Time. O pesquisador e vice-diretor do Instituto do Cérebro (ICe), da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), ganhou notoriedade internacional nas ciências estudando os efeitos do sono, dos sonhos e das memórias. No artigo Why we can’t ignore our dreams, ele discute a importância de voltar ao passado para compreender o presente e mudar a maneira de olhar a vida e seus efeitos na natureza.

Sidarta começa lembrando dos sonhos premonitórios de Júlio César e sua esposa, Calpúrnia. O imperador romano sonhou voando alto a ponto de se encontrar com o deus Júpiter. Já sua esposa viu no sonho que ele seria esfaqueado e pediu para que não saísse de casa no dia seguinte. “Ambos os sonhos eram precognitivos: enquanto a subida ao céu para estar com o rei dos deuses era uma metáfora da morte de César e subsequente divinização, as imagens concretas do sonho de sua esposa previam o futuro em detalhes”, conta Ribeiro no artigo.

Ao trazer essa referência, o neurocientista desafia a ordem vigente da ciência ao defender que os sonhos podem ser compreendidos além de uma experiência de imaginação do inconsciente, assim como pensam a psicanálise e a maioria dos líderes espirituais. Em seu texto, Sidarta lembra que a noção de que os sonhos podiam prever o futuro era amplamente aceita na Antiguidade, como visto em alguns dos primeiros registros escritos da Mesopotâmia, no Império Assírio e até no sonho de São José, que previu o risco que corria o menino Jesus de ser morto pelo rei Herodes. 

O pesquisador reforça que a maioria, senão todas as religiões, considera o sonho um portal para a revelação divina e é preciso compreender a jornada psicológica feita por ancestrais para justificar essas crenças fantásticas e descobrir se é possível conciliar os sonhos com a visão de mundo materialista e ainda saber por que isso importaria. Mas, para chegar a uma resposta adequada, Sidarta lembra que é preciso compreender as funções biológicas do sono.

“O sono desempenha muitos papéis diferentes em nossos corpos, como a estimulação da síntese de proteínas, liberação hormonal, desintoxicação e processamento da memória. Durante o sono, as memórias são reproduzidas por meio da reverberação de padrões de atividade neuronal. O sono tem diferentes estágios. O sono de ondas lentas processa memórias de pessoas, animais, objetos, lugares e eventos. O sono REM processa memórias emocionais, como lidar com um incidente frustrante, e memórias de procedimento, como andar de bicicleta”, explica Sidarta, reforçando que a intensidade e a complexidade da experiência do sonho atingem o pico durante o sono REM (do inglês: Rapid Eye Movement: Movimento Rápido dos Olhos).

O cuidado com o sonho, segundo Ribeiro, começou a se desenvolver já no Paleolítico Superior, quando nossos ancestrais sonharam com inovações empáticas e transformadoras. No entanto, esse comportamento começou a mudar nos últimos cinco séculos, a partir do estabelecimento do capitalismo no mundo. E, mesmo voltando a ter repercussão com Freud e Jung, os sonhos nunca mais recuperaram sua importância social, perdendo inteiramente sua relevância de grupo. 

“Com todos os estímulos que invadiram nossas vidas, a oportunidade de dormir e sonhar está cada vez mais ameaçada. A perda de sono pode levar ao déficit de memória, alterações de humor, depressão, obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares e riscos de doença de Alzheimer. A perda de sonhos, por sua vez, pode levar a uma profunda falta de percepção de nossos desejos, medos e desafios, bem como a uma incapacidade de avaliar as consequências de nossas ações”, alerta.

Para o pesquisador, uma atualização cultural é urgentemente necessária, tanto por parte dos líderes políticos como dos cidadãos comuns, pois é hora de reaprender a arte de sonhar com os xamãs nativos que alertam sobre a iminente ‘queda do céu’ causada pelas ações predatórias imprudentes. “Desigualdade, intolerância, mudança climática e a pandemia tornam muito clara a necessidade de uma ação conjunta. A segurança só pode vir de um sonho compartilhado sobre um futuro mais inclusivo. Se quisermos ficar por aqui, é vital entender o que são os sonhos para o bem comum e reaprender a arte de compartilhá-los com nossa família, amigos e vizinhos planetários”, completou Sidarta Ribeiro.

Escrito por Paiva Rebouças

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