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Gestos

— Você é um traste. Um inútil sem serventia — disse ela sem encarar seu marido.

 “Merecido?”, José se pergunta enquanto olha à sua volta, envergonhado com a frase infame proferida por sua esposa Marta. Nota que alguns clientes da mesa ao lado ficaram perplexos. Um senhorzinho não consegue disfarçar, franze a testa e solta um “Vôtz!”. Ele tenta se defender, e em tom quase inaudível retruca:

— Sei que me tornei um péssimo marido. Confesso. Mas também entendo que não mereço isso. Nunca lhe deixei faltar nada. Você há de abonar essa minha qualidade, o meu cuidado. Mas entendo que é insano cobrar sua compreensão a essa altura, Marta.

José e Marta se conheceram na escola ainda criança. Depois de um namorico breve veio o casório antes mesmo de se formarem. Ela, em história, ele em comunicação social. Não tiveram filhos —ela nunca cogitou engravidar — apesar de José sempre retornar ao assunto.  

— Não seria a hora de pensarmos em um filho? É o sonho de uma vida inteira. Nem preciso falar da minha ponta de inveja quando vejo nossos amigos e parentes próximos brincando com as crias — diz ele em tom desanimado.

— Bem, às vezes penso como essa criança seria infeliz com um pai tão ausente, José. Agradeço a Deus por essa minha falta de vontade na maternidade. Nossa relação é um fiasco. Há tempos não conseguimos sequer conversar. Além, claro, das vezes que você some sem avisar — acusa Marta.

— Acho que isso não é hora nem local de discutir a relação. Ou você não vai querer almoçar? — José tenta mudar o assunto prevendo sair do controle.

Novamente ela dispara “você é um traste. Um inútil sem serventia”.

Ele se dá por vencido. Se cala. “Seria porque ontem eu sai com o pessoal da redação? Eu estava macambúzio, precisava espairecer. Não avisei que iria demorar. Mas avisar pra quê?

— Se você quer saber meu paradeiro ontem, e se serve como defesa, sai com alguns amigos para um barzinho. Nada além. Ando sem apetite, desejo, tesão — como queira — por nada. Nem ninguém. Fica tranquila. Meu trabalho é um lixo, meus finais de semana são horrendos, minha vida é sem sentido. E não vou continuar com blá, blá, blá… Eu poderia passar meia hora aqui conversando com você e não conseguiria destrinchar todas as agruras que tenho passado — dispara.

— Ora fique tranquila?! Oh, seu imprestável, você não se manca? Minha alegria não depende mais da sua vida, do seu humor — afirma Marta.

—Ok. Está bem então. Não irei por esse caminho que você quer — José tenta finalizar do assunto.

— Onde está o homem mais feliz do mundo quando escreve a coluna do jornal? Lá, pelo menos, você é uma pessoa bem resolvida, com uma vida conjugal extraordinária, vivendo em luxo, realizando bons passeios, conhecendo cidades extraordinárias e aquela falsidade toda —Marta busca um copo d’água, e se dá por satisfeita com seu ataque.  

José trabalha em um jornal, é um dos fundadores e até pouco tempo estava super bem e empolgado com todo sucesso do periódico. Entretanto, de uma hora para outra viu tudo desandar, nada que faz é prazeroso como outrora. Só pensa em fugir, se esconder do mundo. “Qual o porquê disso tudo?”, questiona-se.

— Estou cansado. Depois dessa sua constatação eu acho que o melhor a fazer é deixá-la sozinha. Estarei em casa. Não consigo digerir comentário tão vil — diz ele enquanto se levanta da cadeira deixando a esposa sozinha. Sai do restaurante cabisbaixo. Ser tratado como “traste, inútil sem serventia” talvez seja maior que o baque de ser diagnosticado com depressão. Sim, somente ontem, em sua noitada, uma amiga médica o alertou: “José, desinteresse, desesperança, falta de motivação e apatia; falta de vontade e indecisão; sentimentos de medo, insegurança, desespero, desamparo e vazio; pessimismo, ideias frequentes e desproporcionais de culpa, baixa autoestima, sensação de falta de sentido na vida, inutilidade, ruína, fracasso, doença ou morte. Meu amigo, você tem depressão”. Isso é algo que ninguém imagina que pode acontecer conosco. A orientação é que busque todo apoio possível.

A frase dita por Marta se tornou um gatilho:

—O “traste, inútil sem serventia” é uma ótima oportunidade para que eu fique longe de pessoas egoístas, que não enxergam além do próprio umbigo. É preciso ter força e coragem, José. Você é humano — resmunga.

Escrito por Túlio Ratto

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