Sobre

Paulo freire, o mamão e a galinha

A vida de Paulo Freire virou um pesadelo desde a aposentadoria de seu pai, o militar Themístocles Freire, e piora com a suspensão do apoio financeiro de seu tio Rodovalho, comerciante de secos e molhados que vê seus negócios afundarem a partir de 1929 com a quebra da bolsa de valores de Nova Iorque. A crise da família Freire que sai da classe média para a pobreza vai piorando até pelo menos 1936, período que ficou marcado na memória de Paulo como uma cicatriz que nunca parou de doer. Em “Cartas a Cristina, Reflexão sobre minha vida e minha práxis” ele dedica o primeiro capítulo especificamente para falar de sua maior angústia e sofrimento: a de passar fome, situação que alcança seu estágio mais agudo em Jaboatão dos Guararapes, lugar que teve, para ele, “sabor de dor”.

“A nossa fome foi a que chegava sem pedir licença, a que se instala e se acomoda e vai ficando sem tempo certo para se despedir. Fome que, se não amenizada, como foi a nossa, vai tomando o corpo da gente, fazendo dele, às vezes, uma escultura arestosa, angulosa. Vai afinando as pernas, os braços, os dedos. Vai escavando as órbitas em que os olhos quase se perdem, como era a fome mais dura de muitos companheiros nossos e continua sendo a fome de milhões de brasileiros e brasileiras que dela morrem anualmente”, relata Paulo Freire.
Ele lembra que tinha ciência das precárias condições financeiras da família mas não tinha como ajudá-la aos 11 anos de idade. “Assim como meu pai não podia prescindir da gravata, que, mais do que pura expressão da moda masculina, era representação de classe, não podia permitir que eu, por exemplo, trabalhasse na feira semanal, carregando pacotes ou fosse serviçal de alguma casa”, pondera Paulo sobre a necessidade da família de, apesar das angústias, ainda tentar manter um status que não mais lhe pertencia.

Segundo Paulo, a coisa piorou depois da morte do pai, mas é com mágoa que ele conta o que viu sofrer sua mãe, dona Tudinha, para não deixar faltar o mínimo para mantê-los de pé. “Era, por exemplo, acompanhando-a, que eu pude ver com que rosto de vergonha, de intimidação ela ficava quando o sujeito da venda – minha mãe ainda não tinha posto o corpo inteiro na porta – gritava por trás do balcão que não venderia a ela porque a dívida já era grande e que ele não acrescentaria mais. Ela nem balbuciava um ‘desculpe’ ou ‘muito obrigada’, voltava-se para rua e saía e eu atrás, sem comentários também. Essa coisa me marcou profundamente”, lembra.

Neste período, restou a Paulo e seus irmãos fazerem incursões proibidas nos quintais alheios de sua rua e bairro em busca de alimento nos pomares e árvores frutíferas. O que ele chamou de “geografia dos quintais” era, na verdade, a geografia da fome que agora constituía sua nova forma de olhar o mundo e a natureza. Diferente de quando ele, na condição de sujeito alimentado, podia vislumbrar os fenômenos e seres naturais como parte de sua constituição como sujeito da vida, pessoa humana na construção de sua autonomia individual, agora suas incursões tinham o propósito único de vencer suas necessidades primárias. De menino bem criado, Paulo era agora um faminto delinquente que agia com o único intuito de matar o que lhe matava: a fome.

“Conhecíamos os lugares mais seguros, onde, cuidadosamente, entre folhas secas, acolhedoras, mornas, escondíamos as bananas que tirávamos ainda ‘em vez’ (amadurecendo) e que assim ‘agasalhadas’ amadureciam ‘resguardadas’ de outras fomes, como, sobretudo, do ‘direito de propriedade’ dos donos dos quintais”, conta Paulo em suas Cartas a Cristina.

Um desses donos de quintais, prossegue ele, o flagrou um dia, manhã cedo, tentando furtar um mamão de seu quintal. “Apareceu inesperadamente em frente a mim, sem que eu tivesse tido a oportunidade de fugir. Devo ter empalidecido. A surpresa me desconcertou. Não sabia o que fazer de minhas mãos trêmulas, das quais mecanicamente tombou o mamão. Não sabia o que fazer do corpo todo – se ficava empertigado, se ficava relaxado, em face da figura sisuda e rígida, toda ela expressão de uma dura censura a meu ato. Apanhando a fruta, tão necessária a mim naquele instante, de forma significativamente possessiva, o homem me fez um sermão moralista que não tinha nada que ver com minha fome. Sem dizer palavra – sim, não, desculpe ou até logo -, deixei o quintal e fui andando sumido, diminuído, achatado, para casa, metido no mais fundo de mim mesmo. O que eu queria naquele instante era um lugar em que nem eu mesmo pudesse me ver”, relata.

Outra recordação de que Paulo chama de “atentados”, realizados por ele e seus irmãos, aconteceu numa manhã de domingo por volta das 11h da manhã. Tinham entretido o estômago com um pouco de café e um pão sem manteiga, quando apareceu, no quintal da velha casa em Jaboatão, uma galinha que, possivelmente, pertencia ao vizinho. A galiforme que ciscava em busca de algum inseto incorreu no erro de se aproximar dos meninos que a agarraram e a sacrificaram imediatamente.

“Minha mãe chegou em seguida. Nenhuma pergunta. Os quatro se olharam entre si e olharam a galinha já morta nas mãos de um de nós. Hoje, tantos anos distantes daquela manhã, imagino o conflito que deve ter vivido minha mãe, cristã católica, enquanto nos olhava silenciosa e atônita. A sua alternativa deve ter estado entre repreender-nos severamente, devolvendo em seguida ao vizinho com desculpas o corpo ainda quente de sua galinha pedrês ou preparar com ela um singular almoço”, disse Paulo.

Mas, diante da situação, venceu a fome (Paulo chama de “bom-senso”). Dona Tudinha, no mesmo silêncio que flagrou o delito, entrou na cozinha e foi depenar e preparar o animal abatido, “num trabalho que há muito não fazia”, segundo Paulo. “Nosso almoço, horas depois, naquele domingo, decorreu num tempo sem palavras. É possível que sentíssemos um certo gosto de remorso entre os temperos que condimentavam a galinha pedrês do nosso vizinho. Ali, sobre os pratos, aguçando a nossa fome, ela deveria ter sido, também, para nós, uma ‘presença’ acusadora do que nos teria parecido um pecado ou um delito contra a propriedade privada”, acrescenta.

No dia seguinte, supõe Freire, ao perceber o desfalque em seu galinheiro, o vizinho deve ter esbravejado contra o ladrão acusando, possivelmente, pessoas pobres da região. “Jamais poderia haver pensado que perto, muito perto dele, estavam os autores daquele sumiço”, completa Paulo Freire.

Escrito por Paiva Rebouças

Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Carregando...

0

Sitio Novo — Um novo sítio histórico no Traíri potiguar

Papangu na Rede | Versão Flip | Dezembro/2021