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À sombra da parede às 11h

Os becos e vielas que me atravessam parecem não ter saída, ainda assim eu sigo como numa simulação inconstante. Cachorros latindo evocam a madrugada, o sol a pino queima em cada fresta e tudo o que eu faço é passar a mão onde dói na tentativa fracassada de resfriar o que arde. A mão na pele quente me lembra que apesar de parecer um sonho, suponho estar vivo, ao que me conste. 

Para frente ou para trás os caminhos são os mesmos, mas voltar é reviver o que não suporto. Há uma sombra que indica minha presença como se eu pudesse estar inteiro também no passado, embora em círculos incompletos. Mas a sombra não se reproduz e aí é onde tudo se desalinha. A sombra é ausência de réstia e de sol, de calor e vida, ainda que denote a presença de um corpo, uma massa que sempre se moverá na rotação da esfera.

Aqui os passos são pesados e lentos, mas não há lama afundando meus pés, apenas o peso enorme de minha cabeça. Dói, suponho, mas a dor mesmo não é latente, é só uma suposição. Dói de um jeito distinto do que se considera dor nociceptiva, inflamatória, neuropática, mas também não parece funcional. É um espectro de dor que se alastra nos ombros e circula os olhos, mesmo quando fechados.

Daquela canção, nem a música entrega o sentimento contido. A letra desvia-se do reto pensamento construído, a melodia para antes de confirmar a agonia da coincidência. Sensação fragilizada, embocadura desigual. Tenho impressão de que nenhuma canção é para mim, mas há sinais que parecem sair de rádios confusos atrás das paredes velhas. Uma harmonia misturando-se a outra apressando as sombras que se esgueira à retaguarda de meu destino.

Flores e musgos nos cantos do meio fio testam a resistência do concreto, mas são tão frágeis quanto a minha segurança. Um vento a mais e tudo dissipa no ar. O esgoto cheio de química percorre o pé da calçada e seu material orgânico expele um odor conhecido. Nada que é humano me é estranho.

Não há fim nesta caminhada, embora os becos pareçam sempre que vão acabar. No relógio sempre são onze horas e uma sirene lembra que é momento da vida fumar outro cigarro. Silêncio profundo cortado em lembranças. Moscas zumbindo momentos distintos e o sol mais quente sobre o Equador. As pernas cada vez mais pesadas e o sapato queimando. Sapatos velhos manchados de suor e caliça. Um cheiro de couro envelhecido exala um perfume peculiar. 

Sento e me encosto na parede. O mormaço me obriga a respirar devagar. Quanto menos movimentos, menos angústia. Meus pés descansam um instante, mas ainda parecem machucados, embora siga sem entender que tipo de dor lateja. Tenho forças para caminhar e para ficar sentado, não há diferença em ir ou ficar. Eu fico e minha cabeça vai, mas como num carrossel, volta às sombras e me traz de lá a poeira de um tempo. Meus olhos doem, minha cabeça dói, minhas mãos estufam pelos dedos e eu não posso fazer nada, eu não sei fazer nada a não ser observar e pensar se sigo ou durmo.

Escrito por Paiva Rebouças

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