A ciência tem como missão explicar tudo o que é possível explicar, mas os cientistas não fazem isso – ou pelo menos não deveriam fazer – para impor algum poder opressor sobre o mundo. Não, o papel da ciência é compreender a natureza, buscar explicações baseadas em evidências e desenvolver teorias que possam ser testadas e refutadas. É importante entender de onde viemos e saber para onde iremos, quais são as doenças e como combatê-las, quais as probabilidades de cair outro asteroide na terra, se teremos ou provocaremos novas extinções em massa… A capacidade de conhecer, de explorar, de se superar é inerente à mente dos primatas humanos, mas também de ter fé, de duvidar e de acreditar numa existência suprema e divina.
Faz mais de 160 anos que Darwin publicou o seu livro ‘A origem das espécies’, um trabalho longevo que mostra como os animais se adaptam ao ambiente, dando origem a outros animais. O naturalista, que também era teólogo, não descobriu isso sozinho, na verdade ele reuniu nesse trabalho todo o conhecimento discutido na época, uma vez que o criacionismo já não era aceito por muitos pesquisadores há séculos. É bom lembrar que a igreja colaborou com os estudos de Darwin, não exatamente para que ele refutasse as ideias bíblicas, mas para que conhecesse os fenômenos do mundo, pois, além de patrocinar as artes, o clero também financiou a ciência em muitas ocasiões. Vários religiosos fizeram contribuições importantes para o avanço científico.
São inúmeras as intercorrências em que igreja e estados se juntaram contra pensadores. Hypatia de Alexandria (350-415), filósofa e matemática grega, uma das principais intelectuais da Antiguidade, foi assassinada por uma multidão de cristãos fanáticos, que a acusaram de pagã e bruxa. Miguel Servet (1511-1553), médico espanhol conhecido por suas contribuições para a anatomia e a medicina, rejeitou a doutrina da Trindade cristã e escreveu obras consideradas heréticas. Foi condenado por heresia pela Igreja Católica e queimado na estaca. Giordano Bruno (1548-1600), filósofo, astrônomo e defensor do heliocentrismo, foi acusado de heresia pela Inquisição Romana e queimado na fogueira em 1600. Galileu Galilei (1564-1642), astrônomo e físico italiano, enfrentou oposição da Igreja Católica devido à sua defesa do sistema heliocêntrico proposto por Copérnico. Ele foi chamado perante o Tribunal da Inquisição e, sob ameaça de tortura, foi forçado a renunciar às suas visões heliocêntricas.
Apesar desses casos e outros também conhecidos, a separação entre religião e ciência ganha maior adeptos depois do Iluminismo (1685). Até então, nem todas as interações entre igreja e ciência foram negativas – como hoje ainda. O movimento protestante, iniciado no século XVI, poderia ter construído uma ponte segura entre conhecimento e crença, mas parece que muito desse movimento descambou para lugares mais arredios do que os que haviam sido construídos por parte do catolicismo. Atualmente, setores do neopentecostalismo têm criado figuras estranhas que defendem absurdos como a possibilidade de dinossauros terem sido colocados na Arca de Noé. É importante esclarecer que os antigos dinossauros e os humanos não conviveram.
Alguns grupos se reúnem no mundo todo para refutar a ciência com a chamada “teoria do design inteligente”. Esses indivíduos argumentam que existem características nos organismos vivos e em fenômenos do universo que não podem ser adequadamente explicadas pela evolução natural e requerem uma explicação além da ciência convencional. Acontece que não conseguem provar nada porque não têm evidências empíricas, nem consistência com os princípios do método científico, como também se limitam a buscar explicar à luz dos escritos históricos (não científicos) da Bíblica. Na maioria das vezes, se apoiam em explicações incompletas de achados que não esclarecem tudo, mas apenas uma pequena parcela de outra parte menor. Há ainda os que acreditam na possibilidade de termos sido criados por extraterrestres, numa missão exploratória intergalática.
No meio disso tudo está Deus, ser que passa a existir conforme a necessidade de quem o cita. Quando é para se proteger, faz-se furioso e vingativo, como no Velho Testamento, quando é para acalmar e perdoar, torna-se justo e calmo. Se para a ciência é impossível explicar Deus, pois não há nenhuma evidência material que o leve a ele, pior é para alguns crentes que se fixaram na ideia desnecessária de explicá-lo. A natureza tem uma lógica matemática perfeita, o que inclui os seres que vivem nela, entre os quais nós, primatas humanos, animais tal qual as outras espécies do ponto de vista biológico e natural. Aquilo que para alguns é perfeição divina, está mais para um grande organismo vivo que depende de vários movimentos e circunstâncias para se manter assim. A cadeia alimentar é um exemplo disso: os animais pequenos são devorados pelos maiores e os microorganismos precisam de nossos corpos para se reproduzir. Somos todos ambientes com prazos de validade.
Tentar explicar essa complexidade é fascinante e necessária para sabermos o que fazer com os fenômenos advindos desses ciclos. Mas o planeta terra e sua confusão – ou a sua incapacidade de muitos compreendê-lo – não é suficiente para supor a possível existência de um Deus. Pois, para ser Deus, criador de tudo, a complicação está naquilo que está além do átomo, da fissão nuclear, da expansão cósmica, das nanopartículas, da matéria escura. Coisas que de tão complexas parecem divinas – e talvez sejam. Se Deus criou o universo, a terra é um grão praticamente invisível considerando as mais de um trilhão de galáxias que se imagina ter (até então). O cientista, com toda a sua arrogância, sabe que todo conhecimento dito hoje pode ser refutado, requalificado e reescrito amanhã. Certos crentes, por outro lado, no alto de suas ignorâncias, acham que Deus está com um caderno decidindo quem vai pro céu ou para o inferno.
Essa mediocrização de Deus é chave para o extremismo religioso. Existem diferentes abordagens para a relação entre ciência e religião, e nem todos os crentes negam a evolução ou outras descobertas científicas estabelecidas. Mas, do ponto de vista pessoal, tendo a acreditar que Deus, sendo quem é, não deveria ter tempo para coisas tão insignificantes, embora, nessa concepção, tenha sido ele criador de tudo. Materialmente, repito, não é possível, ainda, explicar Deus, mas negar a evolução, a astrofísica, a biologia, a sociologia, etc, em nome de concepções mal compreendidas na leitura de uma única coleção de livros antigos e manipulados ao longo da história também não. Deus não se explica porque, existindo, ele não precisa ser explicado, pois não é necessário. Ou, talvez, seja tão simples que o explicamos todo dia e não somos capazes de perceber – e nossas mentes limitadas jamais entenderão isso. Ao contrário do que apregoam por aí, Deus não parece carecer de bajulação, como se diziam dos deuses antigos gregos e nórdicos. Deus não liga para o que pensamos ou fazemos, pois ele criou a natureza para se autorregular, daí as consequência dos desequilíbrios ambientais.
Ninguém é obrigado a acreditar em Deus, ele também não liga pra isso, mas os que preferem acreditar têm o benefício de nunca se sentirem sozinhos, como disse a escritora Rachel de Queiroz, que se posicionava como ateia. Aos que têm fé, como diz minha mãe, é óbvia a presença de Deus, não como um sujeito espião, acusador ou castigador, mas como força de vontade e dignidade. Ele parece muito claro nos gestos de amor e solidariedade, nas horas de solidão e desespero, naquele momento em que a cabeça repousa no travesseiro e se descobre que é só você e o mundo. Quando se estende a mão, não por caridade, mas por empatia, por respeito e verdade; quando você sente dentro de si uma força estranha que lhe move sem explicação, algo divino, natural, como o vento que nos toca e nos refresca, como os bons pensamentos que trazem a sensação de alma limpa e nos fazem sorrir por nenhum motivo aparente. Ali está Deus, você acreditando ou não.