Sobre

Latada

Dali, daquele monte de areia batida, sedimentada de tanto pisada, molhada e cuspida, chamava-se o gado. Final da tarde. Vocalização alongada, aspas de vaquejada, sofrimento flamenco de algum resquício cultural da Andaluzia. Meu avô, de poucas palavras, entusiasmava-se chamando o gado.

Latas de querosene estendidas a martelo, pregos sustentando as pontas com firmeza nas ripas e caibros, espaço dois por dois e olhe lá. Só o suficiente para não molhar a porta da cozinha ou a soleira feita de algum pedaço velho de madeira.

Latada, não varanda, caramanchão, pérgola, pavilhão, gelosia ou parreira, latada, pois era feita de lata. Duas forquilhas tortas sustentando a estrutura de zinco armado à martelada. Utensílio simples com propósito básico, mas que definia toda a existência e prevalência de um signo, a permanência de um significado que jamais foi substituído na memória por outra coisa que não fosse semelhante àquela imagem.

Alpendres, de madeiramento e telha, não são latadas, pois na construção semântica de minha infância, latada só poderia ser definida por uma construção cuja cobertura fosse de latas, o que não significa folha de zinco, dessas brilhantes compradas em material de construção. Lata só existiam duas: de querosene e de óleo de caroço de algodão, qualquer outro metal mudaria obrigatoriamente o sentido lógico daquela arquitetura.

Sob sua sombra pouca, construí muitas fazendas de gados de ossos de ovelhas. Algumas vértebras eram direitinho tratores, máquina mais bonita já criada pelo homem. Aos 30 quilômetros por hora, faz os cabelos esvoaçarem, acende a adrenalina de menino, o que destampa a panela do sorriso. Segurança alguma, lugar nenhum para se apoiar a não ser o próprio paralamas armado sob a roda gigante. Posso dizer que o trator foi meu primeiro trem, minha única montanha-russa.

Da esquina para o oitão o tanque d’água quase sempre vazio. Da outra banda fumegante pela chaminé do fogão, cerca de vara e curral. Ao fundo, por trás de tudo e até da casa, a porteira abraçando a estrada. No rumo contrário, para onde meu avô usava o vento como transporte da voz, o sertão todinho como num quadro estanque e pequeno, desses que se esquece na parede. Um pezinho de jucá à direita com ninhos pequenos indicava o começo da estradinha torta. À esquerda, aroeira frondosa recheada de ninhos de gralhas, observatório de carcarás, alinhava a visão da roça de algodão.

Solilóquio de reza e cancioneiro antigo vindos da cozinha velha e escura. A voz pouco delicada de minha avó lembrando da mocidade e mantendo vivas histórias mais antigas que nosso próprio país; passagens decoradas de ouvir cantorias. Um jovem que luta com um dragão em defesa da honra de uma princesa, um capitalista que constrói um planador em forma de ave para roubar uma donzela. Reinos, ducados, países estrangeiros. Todas palavras bonitas, mas sem significado para quem só conhecia a existência de mato. Mas ouvi-las educava a mente a construir narrativas melhores com o gado de osso.

Em dias de inverno, a chuva faz batucada na lataria da latada e inunda o terreiro limpo de vegetação até certa altura. Lamaçal em frente à cozinha velha. Galinhas e ovelhas fazem pisadela. Na manhã seguinte, o milagre da biologia estendido por toda a extensão daquele pequeno mundo que se forma. Micro-floresta de babugem, alimento para aves e minhocas, sinal de forragem para os animais maiores. Caramujos pequeninos passeiam pelas ramagens que só se consegue ver pelo quantitativo. Uma festa de tanto bicho que de tão minúsculos obrigam-nos a deitar e quase encostar o olho na terra para ver sua existência e beleza.

A latada é um observatório do micromundo que se forma lá fora, mas que, com certeza, se forma, microscopicamente, do batente para dentro também e, bem possível, se enraize em meus pés descalços de menino. Resistência pela convivência, como parte daquilo tudo, integrante da natureza que compartilha o meio e só o transforma o suficiente para existir. Como os pássaros que fazem casas, o gado que cavuca a terra, os tatus que cavam cacimbas. Natureza viva e proeminente, bichos influenciando bichos, animais como quaisquer outros.

Toco de madeira usado como banco, trilho de trem como biga para amolar enxada. A história natural e humana ali em pequenas porções de representações. Qual madeira deu aquele toco? Se for natural da região, quanto tempo viveu antes de ser cortada? Se é de outro lugar, quando trouxeram sua semente pela primeira vez? Foi homem ou foi avoante? E aquele trilho, teria vindo em navio inglês? Quantas pessoas e vagões suportou até chegar ali naquela latada? Teria minha avó ideia de que existia em seu terreiro algo que veio de um reinado, forjado por súditos de um reino legítimo e mais antigo que nosso próprio continente?

A latada, a olho nu, era um paliativo daqueles que, desprovidos de recursos, usam qualquer estrutura para se amparar. Mas, para nós, era o espaço de nossa vivência real e intermitente. Rotina orgânica com o biológico, o cosmo, a santa trindade e a literatura medieval que alimentava nossos mitos e lendas. A latada, simples e esteticamente duvidosa, era um dos portais de nosso castelo de barro, único mundo que realmente conhecíamos.

Escrito por Paiva Rebouças

Fé no ser

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