Lembra ou conhece o dilema do trem, usado na filosofia para discutir questões morais? Bem, o dilema moral do trem, apresentado por Philippa Foot, filósofa britânica que se destacou em ética e filosofia moral, é um experimento mental que coloca em questão a decisão moral de sacrificar uma vida para salvar outras. No cenário, um trem está desgovernado e se aproxima de cinco pessoas que estão presas na linha férrea. Você está perto de uma alavanca que pode mudar a direção do trem para outra linha, onde há apenas uma pessoa presa. A decisão moral é se você deve ou não puxar a alavanca para salvar as cinco pessoas em detrimento da vida da pessoa na outra linha. O dilema levanta questões sobre a ética da ação, o valor da vida individual versus o valor da vida em grupo e a responsabilidade moral diante de situações difíceis.
Acontece que este dilema acaba de ser atualizado, tendo como cenário a Segunda Guerra Mundial, o holocausto, em que milhões de judeus foram chacinados pelos Nazistas, e a negligência da Igreja Católica, então comandada pelo Papa Pio XII. De acordo com o jornal italiano Corriere della Sera, uma carta recém-encontrada é um indício gravíssimo de que o chefe da igreja foi avisado dos campos de concentração e da morte inumana dos judeus. De acordo com a CNN, que traduziu a matéria do Corriere, o documento, datado de dezembro de 1942, foi escrita pelo padre Lother Koenig, um jesuíta que fez parte da resistência antinazista na Alemanha, e dirigida ao secretário pessoal do papa no Vaticano, padre Robert Leiber, também alemão. “Na carta, Koenig diz a Leiber que suas fontes lhe confirmaram que cerca de 6 mil poloneses e judeus eram assassinados por dia em ‘fornos da SS (grupo antissemita do nazismo)’ no campo de Belzec, perto de Rava-Ruska, que então fazia parte da Polônia ocupada pelos alemães e agora está localizado no oeste da Ucrânia”, relata a CNN.
Para o arquivista do Vaticano, Giovanni Coco, a carta tem uma importância “enorme” por se tratar de “um caso único”, pois mostrava que o Vaticano tinha informações de que os campos de trabalho eram, na verdade, fábricas de morte. A reportagem do jornal italiano diz ainda que “Os apoiadores de Pio XII dizem que ele trabalhou nos bastidores para ajudar os judeus e não se manifestou para evitar o agravamento da situação dos católicos na Europa ocupada pelos nazis.” (tradução CNN). Ou seja, embora a informação mostre que o Papa não ficou de braços cruzados, mas está claro que ele deixou o “trem” seguir o curso normal para não tomar uma decisão para não colocar em risco outro grupo, no caso, os membros de sua igreja.
Perguntei a dois amigos doutores em Filosofia o que achavam do caso e as respostas foram curiosas. Um deles citou a máxima “Os fins justificam os meios”, do poeta romano Ovídio, em seus Heroides – frase também cunhada por Maquiavel, no clássico O Príncipe. Contudo, reformulou em seguida dizendo que “Religiões são feitas por humanos, daí seus erros”. O outro (uma mulher na verdade) questionou-me “Como ele teria evitado? Ele poderia era ter evitado o holocausto! Aí resolveu deixar a coisa fluir pra acabar com os judeus?” Filósofos costumam responder perguntas com outra pergunta, embora a deontologia na Filosofia enfatize a importância de seguir princípios éticos universais, mesmo que isso possa levar a consequências negativas em curto prazo. Claro que não espero uma resposta para este caso, ainda mais de filósofos, já que se trata de um paradoxo moral que merece discussão e reflexão e é este um dos objetivos do presente texto.
É preciso reforçar, no entanto, que o que está sendo comprovado agora em relação ao alto escalão católico não é novidade para as suspeitas, muito bem já referenciadas em obras artísticas, como no filme Amém, dirigido por Costa-Gavras, por exemplo. A busca por poder, benesses, prestígio, etc, é do comportamento humano, o que inclui – sem polêmica – o representante de Deus na terra para a igreja católica. O que seria ético para o Papa senão agir pela verdade e justiça? Conclamar a seus fiéis para entrar na defesa da vida humana, não apenas a própria (como fez o próprio Cristo), tema tão debatido pela igreja em outros casos bem específicos. Mas não foi isso que o Papa, os cardeais, abades, bispos, arcebispos, etc, fizeram de maneira ordenada. Por outro lado, vale lembrar que todas as vezes que um representante da Igreja Católica se mete a defender questões sociais sofre punições, vide Frei Caneca, Dom Helder Câmara, Leonardo Boff, Frei Tito, Frei Betto e outros. Assim como esses, o atual papa, Francisco, também pode ser colocado como exemplo de justiça, uma vez que foi ele quem anunciou abertura de arquivos secretos do pontificado de Pio XII durante a 2ª Guerra Mundial e eis aí alguns resultados.
Mas não estou aqui questionando a importância dessa religião, nem a de seus membros que, por outro lado, têm dado relevante contribuição humana, às letras e às artes e têm sido um caminho necessário para os desamparados. A questão aqui é um ponto no papel branco, afinal, relembrando o amigo filósofo, “religiões são feitas de humanos” e, aos humanos, agora pensando no que supostamente disse Cristo, é preciso reconhecer os erros e reconciliar-se com Deus por meio do perdão. Contudo, é tempo ainda de questionar a mitificação dos homens e a santificação dos religiosos. Não é que um homem não possa fazer coisas extraordinárias, pode e faz, o que inclui atos bonitos de caridade, humildade e quase milagres, mas tenho como quase impossível que um humano possa ser elevado à categoria de santo, pois um santo, na tradição cristã, é uma pessoa reconhecida por ter vivido uma vida exemplar de serviço a Deus e ao próximo e aí, recorrendo novamente à Filosofia, posso perguntar: o que seria exatamente uma vida exemplar? Essa questão me parece criar caminhos para outro paradoxo e novos dilemas para se discutir.