Sobre

O sonho

— E esse sonho, senhor Ferreira? — indagou a enfermeira Magda.

José Ferreira das Mercês respirou fundo; paciente, elevou os olhos para o teto do quarto do hospital em que se encontrava, ficando a observar o ventilador em sua cadência regular.

— Tão vivo e intenso, senhorita Magda, como se eu estivesse a viver todas as cenas. Tudo tão…

Embargou a voz, invadido pela emoção. O aparelho que monitorava os seus sinais vitais emitiu alguns bips. A enfermeira de pronto verificou a situação, recomendando-lhe:

— Mantenha a calma. Nada de emoções fortes. O seu quadro ainda inspira cuidados.

— Eu sei, eu sei… mas é bom falar. O que se deu na última noite está a me consumir, mexendo muito comigo — argumentou Ferreirinha.

Magda encostou-se ao leito e pôs a mão direita sobre a testa suada do paciente. Misto de carinho e atenção.

— Se me prometer que me contará tudo sem deixar a pressão subir, sem problema. Serei uma ouvinte atenta ao seu relato. Estamos combinados?

Nesse instante Ferreira sentiu um discreto perfume. Uma fragrância leve e cítrica. Em seguida observou-lhe a beleza dos olhos agateados e a conformação do seu corpo. Sem dúvidas, uma bela jovem, apesar daquela beleza ficar um pouco escondida na vestimenta de trabalho.

— Combinado. Já é noite, aproxime-se mais. Preciso falar em tom baixo. Vou contar tudo, exatamente como ocorreu. Melhor, como sonhei.

Magda puxou a cadeira de acompanhante para bem perto do leito de Ferreirinha, ajeitou os cabelos cacheados, a liberar os ouvidos para colher a narrativa.

— Sou um desgraçado, eu sei. Minha vida tem sido um martírio. A viver sempre na pindaíba, atacado pelas dívidas e sempre cercado de compromissos financeiros atrasados. O dia todo vigiado por credores. Isso fez, Magda, com que o meu primeiro casamento naufragasse. Ao sair de casa, fui abençoado pelo carinho de uma nova companheira. Pouco depois, os filhos — sabe, tenho um casal — levaram-me a repensar aquela situação… Com pouco, nova crise. Quando recorri aos astros, uma forte amizade surgiu entre mim e a cartomante… e o ciúme das duas companheiras tornou tudo um inferno.

— Isso foi um sonho? — interrompeu-lhe Magda.

— Não, não, amiga. Estou contando um pouco da minha vida, a fim de você compreender melhor o meu sonho. Entendeu?

— Sim. Continue.

— Pois bem, custei a dormir na noite passada. Lembra quando eu pedi a você um comprimido para relaxar?

— Sim, o médico havia prescrito um ansiolítico leve, caso você precisasse.

— Após tomar aquele comprimido, ainda levei um tempo para cair no sono profundo. E…

— Calma, seu Ferreira, não se deixe levar pela emoção — advertiu-lhe a enfermeira.

Nesse momento Magda, atenciosa e meiga, já estava a segurar-lhe a mão direita. O olhar fixo nos olhos do narrador.

 — No sonho, a primeira companheira se aproximou de mim, disse-me uns desaforos e saiu. Eu nada pude falar, a língua presa. Na sequência, a segunda companheira se achegou, pôs-me dois olhos de loba revoltada e deixou-me também. Calado estava, mais calado fiquei. A voz me sumira. De repente a cartomante entra, joga as cartas nos meus pés e, apontando para uma delas, profere uma sentença… Não pude ouvir suas palavras, mas percebia que eram terríveis. Acenava-lhe, a pedir que me escutasse. Nada, nada, ela me deu as costas e abandonou-me na escuridão. Um fosso, então, se abriu aos meus pés, e eu pressenti que era o meu fim. Chorei; e, quanto mais chorava, mais caía naquele vale sem fundo. Na memória, em flashes rápidos, o filme de toda a minha vida. Meu Deus, meu Deus!… Sou um pobre coitado!

Magda aproximou-se mais ainda do seu rosto em lágrimas, consolando-o com expressões amáveis, na tentativa de fazê-lo sair daquele fosso de melancolia. A proximidade dos lábios fez com que… um beijo surgisse.

— Seu desgraçado!

— Desgraçado! Agora conquistaste mais uma?

— As cartas não me revelaram tamanha traição.

Na entrada do quarto, as vozes de Domênica Melgaço, Gervásia e Marlúcia de Oxum.

Ferreirinha das Mercês teve um choque, e os sinais vitais fizeram com que a enfermeira Magda gritasse:

— Afastem-se, afastem-se! O caso é de emergência.

E saiu do quarto, às pressas, em busca de socorro.

*Escritor e editor, autor dos livros O Fantasma de Licânia, Mulheres Fantásticas, entre outros.

clauderarcanjo@gmail.com

Escrito por Clauder Arcanjo

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