Sobre

Nosso passado nativo

Minha avó comentava em suas divagações que uma de suas avós era “índia”, daquelas pegas a casco de cavalo. Uma história meio lendária, embora alguns ramos da família trouxessem traços mais queimados, não como pessoas pretas, mas como amorenadas de sol. Obviamente, apesar de sabermos de nossas raízes ibéricas dos povos antigos vindos para o novo mundo sabe-se lá Deus como, nunca nos consideramos brancos, embora nunca nos assumamos pretos. Indígena é algo que nunca se passou por nossa cabeça, não por acaso, afinal de contas o genocídio dos povos tradicionais apagou completamente essas possibilidades. Mas, no final, examinando documentos antigos, há um grande indício de que é possível sim que uma das avós de minha avó tenha sido uma indígena.

Quando Lúcia Tapuya começou um movimento em Apodi para resgatar a tribo desse povo dizimado e apagado da história do Brasil, muitos a chamaram de louca. Ora, quem já se viu, achar índio em Apodi?! Coisa de gente desequilibrada. Acontece que basta olhar para as periferias desta velha cidade, a segunda mais antiga do Rio Grande do Norte, para ver que Lúcia era mais visionária do que “louca”. A cor da pele, os traços de muitas pessoas, as currutelas, como Peba e Porróias, tudo isso eram indícios claros daquilo que qualquer antropólogo ou cientista social sabe de cor: houve um processo de branqueamento das populações indígenas, sobretudo dos que negaram suas origens para poder permanecerem vivos. Milhares foram exterminados durante a Guerra dos Bárbaros no século XVII, genocídio também chamada de Levante dos Tapuyas.

Lúcia começou essa caminhada entrevistando pessoas que confirmaram ter, em sua família, alguém que, no passado, foi “pega a casco de cavalo”. Essa expressão diz respeito ao comportamento violento dos brancos de origem européia e seus capangas que caçavam nativos nordestinos como bichos, sequestravam as mulheres e depois as estupravam ou as escravizavam nas cozinhas dos casarões. Uma lembrança tenebrosa e dolorosa para qualquer árvore genealógica, embora contada sempre como algo “normal”, que aconteceu há muito tempo. Vultos de um passado sem memória.

Na minha linhagem de agricultores, forneiros e vaqueiros, o meu quarto avô por parte de mãe (o segundo avô da minha avó, por parte de mãe, para se mais preciso), um sujeito por nome de Benvenuto, só tinha mãe: Thereza Maria de Jesus, o que é estranho, uma vez que, geralmente são os homens os primeiros citados. O pai de Benvenuto é sempre ignorado. Claro que as pesquisas realizadas até então são inconclusivas, pois dependemos de documentos muito antigos e muito mal preservados, mas a hipótese suscitada por minha avó começa a fazer sentido. Ao contrário dele, sua esposa – minha quarta avó – dona Innocência, apesar de também ser Maria da Conceição, tem registros de pai e mãe.

Os testes genéticos que realizei recentemente me dão apenas 6% de sangue ancestral indígena. 71% de meu DNA é composto por genes europeus, com maior concentração na região Ibérica e na Itália, o que me limita a reivindicar qualquer lugar de assento entre os ilustres Tapuyas Paiacus da Ribeira do Apodi, embora também não possa eu negar esse traço em meu sangue.

Existe uma luta importante acontecendo nesse campo e é preciso que se diga a verdade sobre o passado, sobre a história e suas injustiças. Não se trata, como alguns tolos pensam, de se montar tribos, ocas e arco e flecha como há séculos atrás. Essa visão eurocentrista ignora o óbvio: que a reivindicação está centrada no reconhecimento de um povo mais antigo do que a própria ideia de Brasil. Assim como os judeus, os italianos, os árabes, os alemães e muitos outros, os povos tradicionais brasileiros também têm uma linhagem, um passado e uma diáspora. O seu renascimento e ocupação de espaços e territórios é nada mais do que justiça natural e reparação histórica.

Escrito por Paiva Rebouças

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