A estrada está aberta e quem por ela passa não sabe que antes, bem ali, na linha daqueles dois mourões, habitava uma porteira. Azul entrelaçada, aberta como dois braços freando a liberdade de quem pensava em passar; uma sentinela imponente de madeira resistente à chuva, ao sol, à poeira e ao vento que, em insistência impertinente, a balançava em traquinagem. O vento e o portão em eterno conflito: briga medonha.
Vazio de porteira é também ausência de memória. Os que por ali atravessam ou perambulam não veem na sombra do que já foi portão a réstia de minha infância. Vaporosa para quem ouve, infinita para quem conta. O portão não era um amigo, mas um patrão ou, quem sabe, um meio para uma renda infantil e tutti-frutti que ocupava meus dias. Eu que sempre gostei de trabalhar. Abria o portão para os carros afobados de onde jogavam uma moeda qualquer como paga e eu, como todo sertânico feliz, reconhecia com uma alegria menina.
Minha primeira renda. Níqueis tilintando em vasilha azul-plástica de minha avó. Escondidos dos olhos alheios, pensava eu, em um ambiente de poucos objetos domésticos, onde nada podia ser escondido. A possibilidade de moeda era o moinho que fazia fluir o rio dos dias, lentos, secos e trêmulos do mormaço cotidiano. Vento quente ressecando a pele que mais parecia uma lousa escura de desenhar formas simples, devaneios distantes e alheios ao que se via entre o alpendre da casa velha e a porteira comprida.
Ouvidos atentos distinguiam a gralha de grasnido ininterrupto das ações humanas. Automóveis ou motocicletas sempre apressadas em fugir do sol agressivo e eficiente. Ardente castigo sertanejo. Corria sobre as perninhas finas sabendo de onde vinha: de lá ou de cá, subindo ou descendo. Poeira comendo as vistas, sequidão na garganta, caneco de água retumbando no fundo do velho pote no canto da parede. A ausência da moeda que ficou para a volta. Ouvidos atentos novamente para nova empreitada que rasgue o silêncio silvícola como uma faca quente sobre plástico mole.
O tempo só é linear para quem vai, mas se você para e pensa não há nenhuma linha reta ou divisão que separe o antes do agora; aquele momento gravado na parede da memória com o desejo distante de reconstruir as porteiras azuis como o céu aberto, horizonte distante e azul igual, longilíneo, única imaginação possível de se apontar.
Para a memória geral é apenas uma porteira, objeto inanimado substituível. Agora mesmo deve estar fechando outra estrada ou, quem sabe, em situação mais drástica, escorada sem serventia; pior ainda, queimando em brasa como lenha no fogão de alguém. Para meu baú dos guardados, uma missão que se repete naquela infância pensada. Designer estático de um tempo irrevogável onde, sem diálogo, eu pensava a porteira como uma oportunidade para a qual eu me dedicava sem necessidade de ser demandado. Era minha liberdade financeira, minha goma de mascar, meu carrinho de plástico, se desse.
A porteira era uma faixa que limitava a posse do ser e do estar. Briga com meu primo pelas moedas quando, esporadicamente, estava por lá. Minha avó me repreendendo para dar oportunidade ao outro: tadinho, mais novo e sem pai. Ela me ajudava ali a exercer com mais propriedade a empatia, embora também meus rancores. A porteira era minha necessidade, era eu quem dali tirava o desconto do tempo sem nada pra fazer, a moeda que para além do monetário era uma forma de me fazer próximo do que era urbano, humano e social.
Havia uma simbiose entre o alpendre e a porteira, entre nosso lugar minúsculo e todo o resto defendido por ela. Fazenda de cavalos, de gado nelore, de água jorrando em poços profundos, cajuais conjugando o futuro das fábricas de castanhas e sucos de caju. A porteira restringia para nós tudo o que se movia depois dela e nos mantinha, ali, presos num passado perene, sabendo o que se passava além de suas treliças. A porteira nos barrava, mas talvez fosse ela que nos protegesse de ser como os demais urbanizados, pessoas sem apego à memória, carentes de objetos virtualizados, de atenção alheia. Talvez fosse ela a relíquia de um tempo que deixamos para trás.