(Em memória de Chico Rodrigues)
“Não podemos agir como se estivesse tudo bem”. “Vamos torcer para que após o vírus venha uma revolução humana”. Aposto que você ouviu alguma dessas frases durante a pandemia. Eu, nos meus oitenta e cinco anos de vida, nunca me emocionei tanto com inúmeros exemplos de desprendimento, de amor ao próximo. O interessante é que, à medida que a gente envelhece, tudo parece mais nítido. As pessoas, a família, nossos sentimentos. Quantos se sacrificaram por aqueles que “esticavam” às alturas as estatísticas de óbitos devido ao famigerado vírus? Tomaram nota do número dos profissionais não sobreviventes, quando o essencial era salvar o semelhante?
— Qual o tamanho desse desastre? — questiono-me.
Pergunto também aos meus filhos e netos sempre que estamos reunidos, ao menos quando foi possível reencontrá-los durante nosso quase que infindável distanciamento familiar. Teremos realmente uma revolução humana?
Eles nada respondem. Talvez pela lembrança tão recente da partida de vários amigos e parentes próximos.
— Vô, e qual sua opinião?
Encontro maneiras de tergiversar. Não quero falar a eles que meço esse momento pelas pessoas próximas que nós perdemos. Sim, sou egoísta. Me dói a alma, sinto o solavanco no coração sempre que lembro de cada um deles. Não quero perder os meus. Quem quer, meus senhores? Eis um passo importante quando se está com o pé na cova — na minha idade — o de não querer participar de despedidas de quem poderia fazer bem mais por este mundo desprezível do que simplesmente um velho ranzinza cansado de tudo, da falta de empatia, da vida sem amor.
— Eu sei que você sabe que o mundo não é mais aquele de outrora, nem será melhor do que nos mostra hoje — respondo-lhe. “Vô, não enrola!”, franze a testa e arregala os olhos um menino tão curioso como nós já fomos um dia.
O avô levanta-se vagarosamente, e se dirige à estante no canto da sala de estar. Desliza seus dedos entre diversos títulos à procura de Grande Sertão: Veredas. Quando o acha folheia até encontrar uma página em especial, e, com entonação na voz, dirige-se ao seu interlocutor:
— Meu amor, neste momento, nessa reta final em que me encontro, onde perdemos amigos aos montes, sempre me ocorre esse trecho do livro de Guimarães Rosa, que li ainda jovem, e nunca esqueço. Ele escreveu o seguinte: “Tudo o que já foi, é o começo do que vai vir, toda a hora a gente está num cômpito. Eu penso é assim, na paridade. O demônio na rua… Viver é muito perigoso; e não é não. Nem sei explicar estas coisas. Um sentir é o do sentente, mas outro é o do sentidor. O que eu quero, é na palma da minha mão”.
Seu Mascarenhas olha calmamente em direção ao neto, que se encontra recostado no sofá onde há pouco estava também. Certifica-se de que tem a atenção do netinho e continua:
— “O pacto de um morrer em vez do outro — e o de um viver em vez do outro, então?! Arrenego. E se eu quiser fazer outro pacto, com Deus mesmo — posso? — então não desmancha na rás tudo o que em antes se passou? Digo ao senhor: remorso? Como no homem que a onça comeu, cuja perna. Que culpa tem a onça, e que culpa tem o homem? Às vezes não aceito nem a explicação do Compadre meu Quelemém: que acho que alguma coisa falta. Mas, medo, tenho; mediano. Medo tenho é porém por todos. É preciso de Deus existir a gente, mais; e do diabo divertir a gente com sua dele nenhuma existência. O que há é uma certa coisa — uma só, diversa para cada um — que Deus está esperando que esse faça. Neste mundo tem maus e bons — todo grau de pessoa. Mas, então, todos são maus. Mas, mais então, todos não serão bons? Ah, para o prazer e para ser feliz, é que é preciso a gente saber tudo, formar alma, na consciência; para penar, não se carece: bicho tem dor, e sofre sem saber mais porque. Digo ao senhor: tudo é pacto. Todo caminho da gente é resvaloso. Mas, também, cair não prejudica demais — a gente levanta, a gente sobe, a gente volta! Deus resvala? Mire e veja. Tenho medo? Não. Estou dando batalha. É preciso negar o que o “Que-Diga” existe. Que é que diz o farfal das folhas? Estes gerais enormes, em ventos, danando em raios, e fúria, o armar do trovão, as feias onças. O sertão tem medo de tudo. Mas eu hoje em dia acho que Deus é alegria e coragem — que Ele é bondade adiante, quero dizer”.
— Agora o senhor aloprou! — reclama o irritado rebento de uma geração estranha, descrente e procurando se achar nessa “binarização” do mundo.
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