Sobre

Bons costumes

O táxi para. Coincidência, é Leopoldo — vibra Honório.

Cidade pequena tem disso, você acena para um táxi e tem boas chances de um amigo ser o motorista.

— E aí, Leopoldo. Ia até passar na sua casa à noite e fazer o convite. Hoje é sábado e, como sempre, dia de ir ao cinema. Bora?

— Homem, ando muito desinteressado. Tenho trabalhado bastante, agora que faço “corridas” também para os municípios vizinhos durante a semana. Aos sábados dou um giro pela cidade. Melhorar a renda. Não está fácil. Desses sorte, pois essa é minha última viagem. Confesso que ultimamente sequer consigo assistir televisão. Nem “O homem de seis milhões de dólares”. E olhe que sou fã número um dessa série.

— Entendo. Eu gosto de ver tv enquanto o sono não vem. Passo o dia em sala de aula e me “desligar” leva muito tempo. Não me julgue, mas não perco por nada a novela Pecado Capital, na Globo.

— (risos) Não gosto. Nunca gostei. E não vou te julgar por isso, Honório.

— Homem, é uma história interessante. Um dilema da bexiga taboca daquele motorista de táxi depois que os assaltantes do banco fugiram e deixaram aquela mala cheia de dinheiro roubado no carro dele. E aí, se acontecesse aquilo no seu táxi, você devolvia a grana roubada à polícia? Porque eu ficava. Foda-se o plano frustrado.

— Eu devolvia! — Honório é enfático.

— Devolvia nada. Tá falando e é da boca pra fora.

— Sério. Devolvia. E por uma razão muito simples: fazer o errado. E deve ser uma vergonha do tamanho do mundo ser pego. Nesse caso aí, o cara é bandido também. E não tinha mentira que me livrasse de uma pisa grande.

— Você ainda é desse tempo, homem?

— Sou, sim. Acho até que isso é por causa do meu tio Zé Durval. Lembra dele? Devo agradecer a ele por isso. Você conhece a peça desde que éramos crianças. Reclama de tudo que acontece em volta. Sempre aporrinhou a vida do meu pai, dos meus tios e esposas, além dos meus primos e primas, mas não sabe que eu sei da vida pornográfica que ele leva. E ainda quer pagar de homem direito? Puritano de meia-tigela.

— O Zé? Poxa! Não sabia. Mas eu sempre o achei um nojento. Desculpe a pergunta, ele anda em “brega” também?

— Em cabaré eu nunca vi. Só ouço falar. O que eu sei é que minha irmã Gracinha passou por maus bocados quando ele a encontrou na praça da Matriz com Joca de Neuzinho. Ora, eles já namoram há tempos e o imbecil achou que podia dar sermão porque eles estavam no escurinho, naquela parte por trás da igreja. E o cúmulo: intimidou Joca ao sacar uma peixeira de doze polegadas. No final do quiproquó, saiu regozijando-se de ser um homem de família e defensor dos bons costumes. Gracinha, coitada, chegou chorando em casa.

— Mas que coisa?! E Gracinha e Joca vão se casar, né? Não mereciam isso. Mas voltando ao assunto: você não pegaria no dinheiro do assalto da novela por esse motivo?

— Não. É que o falso moralismo me incomoda. Ver alguém enganar outrem me deixa triste. A mentira não me faz bem. Sei lá, e tenho achado tudo tão sem sentido ultimamente. Acho que é a velhice batendo à minha porta.

— Ia perguntar onde entra a vida pornográfica do seu tio nessa história. Mas, vamos mudar a prosa então, o seu desânimo contagia e eu estou animado. Aliás, bem que você poderia se animar mais tarde no Cine Orion. Vai passar uma tal de Emmanuelle”, que dizem ser estrelada por uma tal Sylvia Kristel, deusa na arte do enxerimento.

— Deusa, é? (risos). Não dá. Também não quero dar as caras com meu tio Zé, aquele fuleiro.

— E ele frequenta o cinema em dias de filmes eróticos? Dona Julieta deixa? — a pergunta segue de risos, mas é interrompida pelo balbucio quase inaudível de Leopoldo “para infelicidade de dona Julieta. Sempre agradando aquele crápula”, que complementa:   

— Era isso que eu ia te falar. O cara quer ser tão direito e fica passeando pela praça — azar das minhas primas que estiverem com seus namorados —, matando o tempo enquanto a luz do Cine Orion apaga. Quando fica escuro, pode ir lá que você o encontra na última fileira de poltronas. E isso acontece sempre. Em filmes de sexo explícito também.

&&&

O breu é cortado pela luz de um isqueiro deixando exposto o rosto daquele senhor de idade, acomodado em uma poltrona na primeira fila. O chapéu de couro escorrega levemente para o lado deixando à mostra barba e bigode muito bem aparados, e uma cara de sem-vergonha assustado.

— Agora o senhor não lembra que é de família. Que puritanismo de merda esse, hein, seu Zé Durval?! — grita Honório, tomando as dores do amigo.

E começou a confusão.

Escrito por Túlio Ratto

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