— Não, não… Não tive culpa, Domênica. Tanta dificuldade financeira… Não tivemos culpa. Não, não…
— Você está sonhando, Ferreira? Ou seria… — pronunciou Gervásia ao seu lado.
Levantou-se, o corpo suado, a mente em tumulto. Dirigiu-se para a cozinha, lá bebeu um copo d’água. Envergonhado, ele sentou-se à mesa. Os pensamentos em desalinho. Ainda a rever cada cena do pesadelo que vivenciara há pouco.
Sem saber o que falara durante o sono, Ferreirinha teve vergonha de encarar Gervásia, e postergou a sua volta ao leito. “Uma mulher tão especial como Gervásia, a tudo me completando, sempre me assistindo… e eu a sonhar com a outra. Meu Deus!”
Ferreira abriu a janela e hauriu o frescor que vinha do jardim. Lá fora, a madrugada silenciosa e uma lua cândida a pontuar o céu de julho.
— Quer que eu lhe prepare um chá?
Teve um susto ao perceber a presença da companheira.
— Um chá é sempre bom, querida — respondeu-lhe, a fala embargada.
Ouviu a água a cair na chaleira e o riscar do fósforo. Os sons na noite alta a rasgarem a paz com uma nitidez que incomodava, definidora.
Ele pressentiu a disposição das xícaras sobre a toalha da mesa e permaneceu com olhos fixos lá fora. Já se passaram vários meses em companhia de Gervásia; acolhido, tratado com carinho e zelo, sentindo-se revigorado para a vida. No entanto a lembrança do relacionamento com Domênica ainda persistia, toldando-lhe a paz de espírito. Algumas vezes em sonhos leves, discretos; outros, em fúria de paixão, entremeados por momentos de briga e reconciliação.
Nessa noite a coisa ganhara amplitude: o aroma dela nos lençóis, os lábios finos a lhe criticarem e lhe atentarem… enfim, um pesadelo. Ele, aflito, a argumentar, tentando estabelecer a paz com Domênica Melgaço; ela mais linda do que nunca, tal qual quando a conhecera. Sem falar no vestido de seda fino e colorido a marcar-lhe o corpo, e ele rogando-lhe perdão. Tudo em vão, ela a desprezá-lo e…
— O chá, querido. Venha.
Ele se voltou, os olhos a denunciarem o seu estado. Gervásia serviu-o e se retirou, cabisbaixa.
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No dia seguinte, Ferreira saiu cedo. Sem fazer a barba, sem tomar o café da manhã, nem esperar que Gervásia acordasse.
Seguiu em passos firmes e rápidos. Quando diante da casa em que se dera o seu sonho da noite, parara junto ao portão. O jardim com flores banhadas pelo sereno da noite. Com pouco mais ele ouviu o barulho da casa, como se todos à mesa no desjejum.
— Mais chá, queridinho?
A voz de Domênica, coberta com o tom da delicadeza, chocara-o. Cabisbaixo, Ferreirinha retirou-se e fez o caminho de volta, em passadas dúbias, num ritmo lento.
Quando frente à sua nova morada, Gervásia o esperava no portão, com um riso acolhedor, de vestido elegante, sóbrio, e com os lábios marcados pelo batom vermelho. Fitou-o e, em voz melíflua, ela tocou-o para dentro de casa, consolando-o:
— Foi apenas um pesadelo, Ferreirinha.
E ele caiu nos seus braços, em pranto e sem culpa.
……………..
*Escritor e editor, autor dos livros O Fantasma de Licânia, Mulheres Fantásticas, entre outros.
clauderarcanjo@gmail.com
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