Sobre

EU, MINHAS COISAS E OUTRAS COISAS

A mãe está com a filha na estação, o trem se aproxima e ela diz: “Minha filha, pega os trem que lá vem a coisa!”. Um clássico mineiro.

Maria, minha companheira de mais de 38 anos, sempre diz que eu sou cheio de coisas. “Lá vem você com suas coisas” eu ouço desde que nos conhecemos. “São tantas coisas/Só nós sabemos o que envolve o sentimento”, diria Roberta Miranda.

Não suporto alguém mastigando às minhas costas. Me dá logo uma “coisa ruim”. Essa coisa chama-se misofonia (leia aqui) e por causa dela, quase me “reio” logo no primeiro dia do Enem, em 2015. Quando abri a prova, alguém abriu um “chilito” na carteira de trás. Com um “farnizim” no juízo, travei geral. Esperei acabar o “crec, crec, nheco, nheco” para recomeçar. Estava quase recuperando a concentração, quando a pessoa abriu um pacote de biscoito recheado. O ruído daquela coisa se abrindo já me apoquentou novamente. Deu trabalho, mas consegui chegar ao fim da coisa toda. No dia seguinte escolhi um lugar lá no fundo da sala, em uma quina e encostado na parede.

Tenho ojeriza a geladeira ou freezer bagunçado. Na minha casa ou dos outros. Certa vez ao visitar um amigo em Tibau, fui recebido com uma cerveja apenas fria e com um desabafo: “Não sei que coisa é essa. Em sua casa a cerveja tá sempre ´véu de noiva`”. Eu falei: “Posso dar uma olhada no seu freezer?”. Maria cochichou: “Mô! Vai mexer no freezer dos outros? Deixe de coisa!”. Dei nem cabimento. A coisa estava feia. “Coisa horrorosa!”, como dizia o professor de mitologia Aquiles Arquelau, personagem de Agildo Ribeiro. Sacolas com frutas, verduras, carnes, frios, polpas, restos de comidas, bacias com peixe, camarão, buchada. Tinha até um peba incrustado no gelo. Devia estar lá há uns cinco anos. E a cerveja… Coitada! Deitada, em pé, de cabeça pra baixo. Tinha que dar um jeito naquela coisa. Eliminei as sacolas, joguei fora um monte de coisas, separei o que sobrou por categoria e arrumei ocupando a metade do freezer. Na outra metade, as cervejas. Na vertical, encostadas nas laterais congeladas do freezer. Coisa de meia hora depois e elas estavam a coisa mais linda. Quando lá voltei semanas depois e encontrei o freezer outra vez esculhambado e a cerveja quente, inventei qualquer coisa e voltei para a minha “véu de noiva” e para o meu freezer mais arrumado que penteadeira de viúva.

Por volta de 2009/10 (Lula 2) vigorava o programa de redução de IPI que barateava preços de eletros da “linha branca”. Um certo sábado de manhã, peguei uma garrafa vazia de cerveja de 600ml, coloquei numa sacola e falei pra Maria: “Vamos ali comprar uma coisa”. Ela perguntou: “E vai comprar só uma cerveja?”. “Não, vamos comprar uma geladeira duplex. A garrafa é pra medir a profundidade do congelador da geladeira”, respondi. E ela: “Acredito não! Nunca vi uma coisa dessas”. Com Maria fazendo de conta que não me conhecia e sob o riso dos vendedores(as) sem entender coisa alguma, saí de loja em loja “enfiando” a garrafa nos congeladores das geladeiras até encontrar um que coubesse uma cerveja de 600ml no sentido da profundidade.

Outra coisa que deixa Maria encafifada é a minha obsessão em manter o carrinho de supermercado arrumado. Cada coisa em seu lugar. Tudo separado por categoria de produto e até os rótulos têm que permanecer voltados na mesma direção. Uma vez ao me atrasar no trabalho avisei: “Adiante aí as coisas que quando eu chegar a gente continua a fazer a feira”. Quando cheguei, lá estava ela com o carrinho todo bagunçado. Peguei outro e falei: “Vamos recomeçar que essa coisa tá muito desorganizada”. Dessa vez ela apelou: “Pois termine aí você sua feira, que eu vou embora. Isso só pode ser coisa de doido!”.

Mas, deixemos as minhas coisas e cuidemos de outras coisas. COISA! Entre as várias definições que encontrei para essa palavra mágica e que a tudo nomeia, fico com esta que considero a mais lúdica: “Tudo o que existe ou que pode ter existência real ou abstrata”. A seguir um breve apanhado – uma coisinha de nada, que fique claro – com a palavra coisa na música brasileira:

– Formosura

Coisa mais bonita é você/Assim, justinho você” (Coisa mais linda: Carlos Lyra e Vinícius de Moraes)

“Olha que coisa mais linda/Mais cheia de graça” (Garota de Ipanema: Tom Jobim e Vinícius de Moraes)

“A coisa mais linda do mundo/Toda de amarelo” (A coisa mais linda do mundo: Wado/com: Fino Coletivo)

Coisa linda/Coisa que eu adoro/A gotinha de tudo que eu choro” (Feche os olhos: Renato Barros/John Lennon – Paul MacCartney/com: Renato e seus Blue Caps)

– Alegria

“Que coisa linda é o amor que a gente tem/É a gente ficando velho e ele nem nem nem” (Coisa linda: Antonio Carlos e Cecéu/com: Dominguinhos)

“Mas se ela voltar, se ela voltar que coisa linda/Que coisa louca…” (Chega de saudade: Tom Jobim e Vinícius de Moraes)

– Papo cabeça ou “porralouquice”

“Esse papo já tá qualquer coisa/Você já tá pra lá de Marrakesh/Mexe qualquer coisa dentro doida/Já qualquer coisa doida, dentro, mexe” (Qualquer coisa: Caetano Veloso)

– Filosofia

“Deixemos de coisas cuidemos da vida/Senão chega a morte ou coisa parecida/E nos arrasta moço sem ter visto a vida” (Na hora do almoço: Belchior)

– Carinho

“Agradeço a Deus porque lhe fez/Ô coisinha tão bonitinha do pai” (Coisinha do pai: Jorge Aragão, Almir Guineto e Luís Carlos/com: Beth Carvalho)

– Protesto

“Prepare seu coração/Pras coisas que eu vou contar” (Disparada: Geraldo Vandré)

– Lúdico

“Estava à toa na vida/O meu amor me chamou/Pra ver a banda passar/Cantando coisas de amor” (A banda: Chico Buarque)

Belas e saborosas canções. No entanto, não existe nada comparável ao surrealismo ou realismo fantástico de Minhas coisas de Rossini Pinto, com o genial Odair José:

As minhas coisas de repente estão tristes

Compreenderam que não existe/Nada mais entre nós

Meu violão caiu de cima do armário

Suas cordas arrebentaram/Dando adeus a minha voz

O meu casaco com você se acostumou

Sentiu tanto a sua falta e de tristeza desbotou

Se eu soubesse que eu iria lhe perder

Não teria acostumado minhas coisas com você (Repete)

Até meu carro já não tem velocidade

Pois ele sente saudade/De quando andava com você

Meu telefone que sabia quase tudo

De repente ficou mudo/E mais nada quer dizer

O meu relógio sempre certo trabalhou

Depois que ficou sabendo/Nada mais ele marcou

Se eu soubesse que eu iria lhe perder

Não teria acostumado minhas coisas com você (Repete)

Coisa arretada da mulesta!

Escrito por Marco Túlio

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