1 – NÃO SONHO MAIS
“Foi um sonho medonho / Desses que, às vezes, a gente sonha / E baba na fronha e se urina toda e quer sufocar” – Chico Buarque
Não lembro se sonhei ou se li por aí, que o isolamento social perturba nossos sonos e sonhos. Também não lembro de ter sonhado algo digno de boas recordações durante esse longo período de reclusão. Um sonho daqueles que você acorda doido pra contar para alguém, sabe?
Tipo assim: Sonhei que estava naquele vídeo do “Quintal do Zeca” tocando tamborim acompanhando Roberta Sá em “Água da Minha Sede”. Sonhei que jogava no Politeama de Chico Buarque, dava um passe genial para um gol seu, ganhava um abraço e depois do jogo íamos encher a cara de cerveja e cantar até o sol raiar e “desraiar”. Sonhei que era convidado de Bela Gil, comia e adorava churrasco de melancia e ouvia o tradicional conselho: “você pode substituir a cerveja Nova Schin por uma cerveja artesanal”, antes de degustar uma bela taça de cerveja de sua produção. Sonhei que escrevia poemas no corpo nu de Paolla Oliveira tal e qual aquele sortudo do filme “Budapeste” baseado na obra de Chico Buarque. Sonhei que mandava uma música minha pro Gilberto Gil e ele gravava. Sonhei que o Potiguar era campeão brasileiro da Série A.
No entanto e por enquanto, só sonho medonho como na música do Chico. Outro dia “pesadelei” que estava no meio de um tiroteio e tentava me defender usando apenas uma folha de papel A4 cobrindo o rosto. De ontem pra hoje sonhei que estava no meio de um filme de zumbis e matava mais de 300. Logo eu que detesto filmes de zumbis. Definitivamente, o sonho acabou.
2 – CADA QUAL COM SEU CADA QUAL
Mossoró. Ano de 1985. Sábado por volta das onze da manhã, numa lanchonete próxima a agência centro do Banco do Brasil, onde funcionava a “Câmara de Compensação de Cheques do Interior”. Eu e um padre amigo meu. Discussão acalorada sobre os dogmas e princípios da Igreja Católica, celibato, inquisição, a fortuna do Vaticano. Aproxima-se um amigo em comum vindo do banco. Olhos vermelhos, olheiras profundas, ar de cansaço, encosta no balcão e pede um copo de café forte, pegando fogo e sem açúcar. “Tô pregado! Quase doze horas no ar. Dei uma saidinha pra esticar as pernas. A porra da compensação de ontem não fecha nem no cacete”. Meu amigo padre e eu ficamos solidários e encerramos a discussão. O problema do nosso amigo era bem mais sério do que o nosso.
3 – A LUA É DOS NAMORADOS E ENAMORADOS.
Sábado à noite. Maridão esparramado no sofá sorvendo os últimos goles da antepenúltima latinha de cerveja do cooler, vendo qualquer coisa na TV. Esposa na varanda do aconchegante apartamento com vista para o mar, esperando algo que nem ela sabe o que é. Noite linda lá fora. Lua maravilhosa. Um convite à paixão. Quase suspirando ela chama: “Amor, vem ver que lua linda!”. Ele impassível: “Pra que ver lua? Eu não sou astronauta!”. Ela sai da varanda, atravessa a sala quase tropeçando nas pernas esticadas do marido e vai para o quarto. Essa noite ela vai sonhar com o romântico e arrebatador namoro de trinta anos atrás, quando passavam a noite em claro e para saciar a loucura faziam borbulhas e silhuetas de amor à luz da lua.
4 – GENTILEZA GERA GENTILEZA
Em um certo dia – alguns séculos atrás, ainda na era pré-pandemica – estava em um coletivo com destino à Av. Maria Lacerda, quando adentrou um casal de jovens. Não havia nenhuma parelha de assentos desocupados para que eles pudessem sentar lado a lado. Então a menina sentou-se no assento à minha frente e o garoto sentou-se ao meu lado. Imediatamente, ela virou-se e de joelhos no assento começou a conversar com o companheiro de viagem. E eles conversavam, riam, ele tocava no rosto dela, ela no dele e esse bate-papo, alegre, mas um pouco desconfortável, seguiu-se por uns 5 minutos. Foi aí que eu falei pra menina: “Sente aqui. Venha ficar ao lado do seu namorado”. Ela começou a rir e falou: “Não é meu namorado, não. É só meu amigo”. E eu: “Tudo bem. Mas vamos trocar de lugar”. Ela agradeceu com um sorriso maior ainda e trocamos de lugar. Logo que sentou-se ao lado do amigo – ou namorado – ouvi os dois cochichando meio espantados: “Você viu isso? Ele se ofereceu pra trocar a cadeira!”. “Nunca vi isso em um ônibus”. Eu ri, feliz da alegria daqueles dois. Desci primeiro, ainda com um sorriso no rosto e eles seguiram na sua divertida viagem. Quem sabe, uma viagem de uma vida inteira. Que sejam felizes, como casal de namorados ou de amigos e que encontrem muito mais gentileza pelo caminho. Afinal, gentileza gera gentileza. E faz muito bem à saúde.
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