“Médica é baleada após arrastão em Candelabro”, grita o apresentador do programa Patrulha da Desgraça. “Mulher é vítima de latrocínio. Mas marido escapa”, comemora o jornalista da Cidade Boquiaberta, apresentado ao meio-dia na capital. E assim o caso do roubo seguido da morte de Amanda foi divulgado na imprensa daqui. Não teve uma pessoa que costuma assistir aos programas na TV local, no horário do almoço, que não tenha tomado conhecimento tim-tim por tim-tim de como tudo aconteceu. Às vezes com mais detalhes do que fora divulgado por quem estava presente. Além das imagens da ocorrência, claro. É praxe.
&&&
Hoje é um dia difícil. O retorno de Jessé ao Casarão da Esperança, na favela da Muriçoca.
— Foi aqui que realizamos um projeto muito bonito. Amanda amava isso tudo — lamenta Jessé.
— Nem sei o que dizer. Sinto muito por ela, meu filho. Por vocês. — diz a Irmã Zefinha, com os olhos lacrimejantes. Ela é uma das voluntárias nos projetos da Vila.
Jessé agradece a irmã e anuncia seu desligamento temporário das atividades na comunidade.
— Claro, meu filho. Entendemos essa pausa — diz a Irmã levantando a mão sobre a cabeça de Jessé, como se tentasse abençoá-lo.
— Queria que a senhora visse um jeito de expressar a minha inaptidão momentânea ao trabalho com o pessoal, como também dizer às pessoas daqui que não as culpo pela tragédia que nos abateu, irmã — explica Jessé já atravessando a porta com acesso à rua.
— Sim. Claro. Leve o tempo que for preciso — finaliza Irmã Zefinha.
Jessé segue pelas ruas sob os olhares dos moradores. Alguns balbuciam, gesticulam ou apenas o cumprimentam balançando suas cabeças. Ele nota olhares entre muros e frestas. Mas isso não o abala. Há ódio no seu olhar, sede de vingança.
Já passa das onze horas da manhã quando estaciona o carro próximo à praça Dão Maria, no Centro da cidade. Caminha em uma ruela que dá acesso ao bar de Macalé. E é recebido com um demorado abraço do dono.
— Bom dia, amigo. Fazia tempo que não andava por aqui. O que houve? — Macalé franze a testa ao perceber seu comentário inapropriado, e tenta consertar:
— Quer uma cerveja bem geladinha?
— Bom dia. Sim, seu Macalé. Pois é, demorei. Não se penitencie pela pergunta. E pode trazer a cerveja! — responde Jessé sem rodeios.
O bar de Macalé fica nas adjacências do Beco da Fama. Local movimentado, de frequentadores assíduos, e clientela fiel.
— Oh, meu filho. Mas antes que qualquer coisa, meus sentimentos. Vou trazer a mais gelada. Hoje não vou deixar Maurinho chegar nem perto daquele freezer, tá? — diz Macalé, limpando com um pano úmido a mesa branca com a ferrugem à mostra.
Maurinho, filho de Macalé, é “famoso” entre os clientes por servir a cerveja menos gelada. E isto já rendeu grandes histórias aos frequentadores do Beco da Fama, reduto da boemia?
Ficara até às duas da tarde acompanhando o vaivém dos transeuntes. Estava certo de que essa pausa, ao menos no Beco, não lhe renderia nada. Mas estava em seus planos seguir até a comunidade, fazer o “social” em algum bar no final de semana. No Beco, era apenas o pontapé inicial, queria ser visto. Na Vila, sim, esperava conseguir informações, ficaria na espreita. Sabe como é, bandido gosta de se gabar dos malfeitos que faz. E na Vila tem muita gente que sabe de tudo. Sobre tudo mesmo. Por exemplo, andaram comentando sobre ele se precaver, pois os responsáveis pelo assassinato de Amanda poderiam atentar contra sua vida novamente. “Com certeza não vão cometer nenhuma besteira lá, na frente de todos”, pensava ele. Afinal, queira ou não, desenvolveram um bom trabalho junto à comunidade e quase todos os moradores de lá e das adjacências também sabem disso.
Algumas pessoas que conheceram o casal paravam junto à mesa em que Jessé estava para lamentar o ocorrido.
— Você viu, Jessé, um dos envolvidos na barbárie em sua casa foi morto no domingo à noite na favela — disse Nestor Bandinha, coordenador da Associação dos Amigos do Beco das Frutas e amigo de Jessé.
— É. Vi, sim. Uma selvageria — “lamenta” com ironia.
— Sim. Uma selvageria e que você deveria se preocupar com essa exposição toda. Ao menos por agora — diz uma pessoa que chega por trás de Jessé.
— Me preocupar? Por quê? Por que estão morrendo também? Vai ver que é queima de arquivo, não querem que vocês os peguem — respondeu Jessé.
André Antunes, que é investigador da polícia, que acabara de chegar,foi quem fez o alerta. Aliás, eles são amigos desde a universidade. E por coincidência está na equipe que investiga o caso do assassinato da médica do bairro Candelabro. Esteve bem presente no início da recuperação do amigo Jessé, até recebendo-o na delegacia diversas vezes, quando dividia os passos das investigações, apesar de não se sentir nada confortável com aquela situação. Ainda assim, dividia detalhes do que a polícia vinha realizando. Entretanto, omitia nomes de possíveis suspeitos envolvidos no crime.
Muitos passaram pela mesa naquela tarde e início de noite. Conversas indignadas, condolências, palavras de conforto, inconformismo. A pretensão deles agora era dar uma passadinha no Gargallos antes de encerrarem a farra, bar que fica nas adjacências do Beco da Fama. André já estava bem “animado” sob o efeito da bebida. Mas queria ficar mais com o amigo.
— É a primeira vez que o cara sai em busca de movimento. É preciso dar uma força neste recomeço, pensa André, enquanto avisa que vai ao banheiro.
— Ok. Pedirei a conta e vamos ao Gargallos quando você retornar — avisa Jessé.
— Tá certo. Veja minha parte direitinho aí. Mas com Macalé. Não chame por Maurinho. O cabra é esperto demais — brinca André, enquanto vira-se e segue ao corredor que dá acesso ao banheiro.
Jessé não se conteve e, na ausência de André, abre rapidamente, sem que nenhum dos presentes ao redor perceba, uma pequena pochete pertencente ao amigo, e puxa uma caderneta de anotações. Vê entre tantas notinhas um nome e endereço sublinhado com destaque no topo: “Amanda/Jessé”.
André volta do banheiro pouco tempo depois, encontra uma cédula de cem reais embaixo do copo americano quase cheio de cerveja e lamenta:
— Caraca. Ele estava indo tão bem…
&&&
Era uma fábrica de gelo. Ouvia-se apenas o barulho de freezers por qualquer corredor que tomasse. Já passava das dezenove horas. Não existia mais movimentação no pátio, tampouco no interior do armazém gelado. Seus passos eram calculados, e o coração só faltava sair pela boca, estava assustado, cuidadoso. Na caderneta dizia que Aluízio Zambeta era vigia daquele local.
Quanto pensou em como seria a abordagem, pois não tivera tempo de traçar nenhuma estratégia, sentiu um soco à altura do fígado, fazendo com ele rolasse até a uma pilha de caixas plásticas. Não fosse por alguns fardos de embalagens, teria batido com a cabeça no chão de cimento cru, que se encontrava molhado. Seu oponente aguardou sorrateiro até o primeiro ataque, e agora vocifera enquanto tenta puxar uma arma do coldre:
— O que você quer? Se queria roubar, veio ao local errado, escroto!
Jessé não reconheceu o bandido. Tampouco o suposto bandido o identificou. Mas também não conseguiria. “Como analisar alguém durante uma luta corporal, ainda mais na penumbra?”, pensou. Foram momentos de aflição, entre socos, golpes e pontapés. O sangue já escorria pela boca, quando preparou a primeira providência importante e crucial, acertou com um chute na mão que empunhava uma pistola. Aluízio deveria ter algo em torno de um metro e noventa de altura e porte atlético, não era fácil desarmar um brutamontes daqueles. Mas, usando um pedaço de mangueira, conseguiu golpear e fazer com que ele soltasse a arma. O revólver deslizou até uma empacotadeira, momento em que Jessé conseguiu aplicar um tranco forte na têmpora, causando um breve apagão em seu opositor, e, com precisão, desferiu um soco na garganta. Sem fôlego, Aluízio sentiu gravemente a traqueia. Alguns segundos se passaram, o silêncio voltou, o meliante meio que entregou os pontos, pois tentava se arrastar desesperadamente até a porta de um enorme freezer — aparentemente sem uso —, na tentava de se refugiar.
Com paciência Jessé puxou-lhe pelos cabelos até ver com bastante calma seu rosto. Era aquele que na noite do crime ficara fumando na entrada de sua casa.
Desta vez não houve interrogatório.
&&&
O tempo haverá de descartar a arma do crime, um pedaço do bloco de gelo que foi usado como uma foice nesta noite.
Comentários
Carregando...