Sobre

Encurralado

Depois de uma longa conversa com o bispo Gilbero Benício, quando relatou a situação que o amigo em comum, Jessé, estava enfrentando, padre Almir se sentiu aliviado. Como colega e confidente, aquele bate-papo com Gilberto tirou-lhe uma carga enorme de angústia. Desde a sua ordenação sacerdotal, Almir tem como guia o bispo Gilberto, pode-se dizer também como a um pai. O próprio Jessé não faz nada que não tenha o conhecimento e consentimento do bispo. Como a situação é muito delicada, imaginara que o amigo “justiceiro” não tivesse relatado o tamanho do desmantelo em que se meteu. E Almir estava certo, há tempos que os amigos não se encontram.

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Há dias a cidade de Catal é castigada por fortes chuvas. Várias ruas estão alagadas, carros submersos abandonados pelos proprietários, outros tantos ficam em filas quilométricas com seus veículos à espera de uma melhora nas galerias de esgotos, que transbordaram, tentando chegar às suas respectivas residências. No rádio, um especialista comenta sobre o mau tempo e diz que este foi o mês mais chuvoso dos últimos vinte anos. Jessé se maldiz do martírio que está sendo “inventar” itinerários transitáveis.

Enquanto fixa o olhar no limpador do para-brisa, que deve estar com defeito, pois não consegue limpar completamente, Jessé recorda o dia em que apresentou seu grande projeto a investidores:

— O aplicativo facilitará na hora em que o doador abre o coração com o único pensamento de doar, e que essa doação seja um ato simples, um ato voluntário e generoso — assim foi iniciada a reunião. — A aplicação também prevê uma parte destinada exclusivamente aos administradores, a partir da qual será possível gerenciar todas as doações que foram cadastradas e, dessa forma, organizar os grupos de coleta de doação que já existem atualmente — Aí, como dizem, é o “pulo do gato”. Como também alguns detalhes que mantiveram em confidencialidade. — Nosso Sistema, senhores, senhoras, irá descomplicar alguns pontos cruciais por meio de uma interface simples e intuitiva.

Assim ocorreu a apresentação. Bem, mais ou menos isso, dito através de relatórios de algoritmos e infinitos “if’s” e “else’s”, antes da assinatura do contrato. Ao encerrar, enfatizou que Amanda, sua companheira e sócia, iria tirar todas as dúvidas no próximo encontro. Ela, infelizmente, não pôde participar naquele momento com os possíveis compradores devido a problemas de saúde.

Durante o vaivém de um lado a outro do limpador de para-brisa, lhe ocorre que deveria ter trocado o bendito acessório:

— Porra! Essa droga está mais para embaçador!  Essa chuva que não para, meu Deus?! — lamenta.

Algumas ruas e avenidas já foram interditadas completamente pela companhia de trânsito. E foi a busca por uma alternativa de fugir do alagamento que Jessé acabou sem querer na Avenida James da Fonseca. Aliás, há intermináveis minutos ele tenta sair desta que é uma das principais avenidas da capital.

— Que susto! — berra ao motoqueiro que acaba de bater em seu retrovisor com o guidão da motocicleta.

— Se liga no espaço aí pras moto, boy! — responde o condutor do veículo, que segue seu caminho como se nada tivesse ocorrido.

O solavanco deixa Jessé irado. Logo ele, que já não anda nada equilibrado emocionalmente. Mas o motociclista o faz agora a todo instante olhar seus retrovisores. Talvez por isso tenha percebido, algumas quadras depois, algo diferente no trânsito caótico da cidade chuvosa:

— Tem algo estranho, além da chuva. Claro. Estou sendo seguido — pensa e se concentra na situação.

Entre tantos veículos que se movem lentamente atrás dele, há uma camioneta que faz tempo segue o mesmo roteiro que Jessé. Só que as três faixas da avenida estão com filas imensas de veículos, e fica quase impossível sair do lugar, não poderia despistá-lo agora. A confusão de luzes, buzinas, o povo se protegendo do temporal com capas e guarda-chuvas, correndo de um lado para o outro, tudo isso o deixa ainda mais alerta ao que pode ser uma perseguição e emboscada. Não é possível ver o ou os ocupantes do veículo, protegido completamente por vidros fumê.

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DUAS HORAS ANTES

A porta está entreaberta. Um cãozinho da raça Yorkshire choraminga, encostado no canto do corredor de acesso ao apartamento. Ele fita a luz que sai da sala de estar. Jessé dá passos silenciosos, com cuidado. Já viu na escadaria de emergência, quando começara a subir a parte externa do edifício, marcas de sangue. Interessante é que se teve luta corporal, tiros, ou algo fora do normal, ninguém se deu conta, pois o silêncio é completo. Se agacha para acarinhar o cachorrinho. O lacinho amarelo se desprendeu do delicado pelo e quase caiu. Percebe-se que as marcas de sangue cobrem parte do laço amarelo da seda. O bichinho para por um momento a sua súplica e dor. Jessé chega à porta e segue lentamente até o corredor principal do apartamento do seu amigo, padre Almir. Vê respingos de sangue por toda a parte da sala finalizando em uma poça grande próxima à mesa da cozinha. Jessé vasculha cômodo por cômodo, tenta imaginar a cena da luta que tiveram no apartamento. Cada detalhe é importante, faz uma revista minuciosa.

— Levaram Almir — pensa ele, enquanto coça o queixo com o cano da pistola. Esse ato ainda o assusta, de fato não se acostumou com o reflexo de estar sempre “preparado” com uma arma em punho.

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Desce pela avenida Prudêncio dos Corais em alta velocidade. Mesmo cortando semáforos em vermelho, a caminhonete consegue se aproximar. Desde que Jessé conseguiu sair da rua principal, próximo ao shopping Mindney, que tenta despistá-los. Porém, sem êxito. Quase bateu em outro carro quando entrou na rua que dá acesso à Avenida Rio Franco. Indo no rumo da Ribeira, chegando na praia do Feio — depois de se perder nas ruas estreitas das Docas, veio a prova de que eles o estavam mesmo seguindo: o vidro da porta do passageiro da caminhonete se abre e uma pessoa coloca quase todo o corpo do lado externo e começa a atirar com uma arma de grosso calibre em sua direção.

A chegada à Ponte de Bolos piora a situação de Jessé. Bem no alto da ponte estaiada o trânsito para. Completamente. Não vê outra alternativa a não ser descer do carro e correr entre os veículos, que não conseguiram seguir viagem. Ao ver dois homens correndo em sua direção, vindos do outro lado da ponte, sente que está encurralado. Ao olhar para trás, percebe dois indivíduos, que provavelmente desceram da caminhonete. Devem estar confiantes, afinal o deixaram sem saída.

A chuva torrencial mantém a situação imperceptível aos motoristas em seus automóveis, que aguardam tão só o trânsito fluir. Quarenta metros aproximadamente o separam dos bandidos e, diante das possibilidades que lhe ocorreram, a que não pode ser descartada é pular naquele instante de cima da ponte — de cerca de 55 metros de altura.

Escrito por Túlio Ratto

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