Lá se vão 34 anos de Companhia Escarcéu de Teatro e do pioneirismo de Lenilda Souza no teatro de rua de Mossoró. O que ninguém imagina é que a carreira de atriz começou de forma inusitada, quando ela era ainda criança, ouvindo a simplicidade das histórias que sua mãe contava ao retornar para casa, após as constantes viagens que fazia à sua terra natal, Patu, distante 124 quilômetros da capital do oeste potiguar. Dona Maria das Dores, conhecida como Dorinha do Sítio Alívio, trazia na bagagem todas as notícias e fatos dos últimos acontecimentos de sua comunidade. “Eu tinha muitas expressões guardadas dentro de mim, muito desejo. Meus exercícios de interpretação foram por intermédio dela, uma contadora de história nata, e que esmiuçava com riqueza essas histórias para que a gente matasse saudade da nossa terra. Açudes, fantasmas, almas… E meus irmãos, além de mim, encenávamos e íamos trabalhando, cada um a seu modo, a arte dentro de si. Foi inusitado esse início” — relembra Lenilda.
Muitos anos se passaram e somente aos 18 anos de idade Lenilda foi convidada — “um acaso do destino”, diz ela —, por uma professora da escola Estadual, para que se apresentasse ao ator Augusto Pinto, na escola Eliseu Viana. Foi seu ingresso para o grupo Arruá e para a primeiro espetáculo, o Arruaça. Nonato Santos, seu marido, com quem divide os palcos até hoje, ficou bastante interessado no teatro de rua quando assistiu à peça. “À época, ele participava do grupo Terra, que tinha Aécio Cândido, Toni Silva, Crispiniano Neto, entre outros. Uma galera mais elite, politizada… Nós, da periferia. Daí nos juntamos e demos início ao Escarcéu” — explica.
O sucesso da peça “A Árvore dos Mamulengos” foi tanto, que o grupo encenou por doze anos seguidos. Depois alguns componentes saíram do grupo para experiências solo, mas a Companhia continua até hoje.
Em 1985, a atriz começou a elaboração do projeto Corpos Negros na Arte, a partir do grupo “Raízes”, devido a necessidade de discutir a questão da negritude em Mossoró, algo que antecedeu o próprio Auto da Liberdade (espetáculo famoso realizado na cidade que conta fatos históricos), e que somente agora entra em pauta, com o apoio da lei Aldir Blanc. “Corpos Negro na Arte é um projeto bem antigo. Projeto na mente, sem grana, tem que esperar o momento” – enfatiza.
“No Auto da Liberdade nunca foi criado espaço para discutir essa questão da negritude, isso sempre me incomodou muito. Porque esses corpos negros, eles estão a serviço da arte, mas, ao mesmo tempo, estão também invisibilizados. A história que falo, não é só a minha, é a história da arte no Brasil, desde a época da colonização. É uma cultura eurocêntrica que nega a existência desses corpos. Toda a história do teatro brasileiro, todas as artes, elas têm fortemente a presença do negro. Mas esse negro também é negado. Sempre teve uma forma de poder esconder a pessoa negra. Segundo pesquisas, os artistas negros construíram e constroem em todas as categorias a arte brasileira. E esse artista, ao qual estamos chamando de corpo negro, ele sempre vem sendo renegado. Sempre que um negro produz algo interessante, que chama a atenção da sociedade, logo se constrói algo para que esse negro não apareça como autor daquela obra. Quantos sambistas temos na história da música que não apareceram? Quantos ganharam destaque na história da música tanto no Brasil como fora do país? Na dança e no teatro nem se fala” — Desabafa Lenilda.
O “Corpos Negros na Arte” será lançado nesta quarta-feira, 3, a partir das 19h, com um vídeo no Youtube da Companhia Escarcéu e logo em seguida artistas, pesquisadores, estudantes e pessoas interessadas terão, por intermédio do Google Meet, um encontro para falar sobre a valorização da produção cultural negra. Além de Lenilda Souza como mediadora, o debate terá as participações das professoras Ady Canário (UFERSA), Eliane Anselmo (UERN), e dos professores Tobias Queiroz e Daniel Mariano (UERN).
“Estamos brigando pela nossa voz, fazendo o que Abdias do Nascimento fez nos anos de 1940, o que Ruth de Souza fez recentemente pelo teatro. Nós sempre vamos enaltecer nossa ancestralidade, porque são eles que nos dão força” — conclui.
VEJA VÍDEO:
Comentários
Carregando...