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O tempo morreu

Passava do meio dia, hora quente e meio insuportável. Nenhuma brisa balançando as poucas árvores dos arredores. Um cachorro cor de caramelo dormia como se fosse frio ou a única coisa a ser feita. Senti certa inveja daquele perdido, sem dono e sem rumo, vagando sua dezena de anos sem compromissos ou responsabilidades. Daria para sentir inveja se não fosse a necessidade de deitar em calçada tão quente.

Pedi um suco gelado e um pedaço de torta. A viagem era longa e me fizera acordar de madrugada. O carro não era velho, mas àquela hora o ar condicionado pouco celebrava a natureza de refrigerar meus pensamentos. Se direciono o vento à minha procura, o frio incomoda, se deixo circular na cabina, o calor faz pingar arrependimentos. A melhor alternativa é parar para esticar as pernas, comer um bocado e espiar a vida, mesmo essa sem graça e calorenta dos botecos de estrada.

Do meu lado, sujeito desses com cara de trabalhador braçal. Tirou o boné da cabeça, sacudiu com força fazendo ressoar uma chicotada na perna direita e subir poeira fina. Após uma interjeição que mais parecia um resmungo, deixou sair de seus pulmões em alto e bom som a grande filosofia do homem comum:

— Vê um café, dona Maria, que “o tempo morreu”.

Mas que afronta inesperado à minha desatenção. Como alguém tão simples oferece, em situação inesperada e despropositada, tamanha sabedoria? Que relevante observação, pensei. Aquela frase fazia todo sentido, mas tanto sentido que o calor meio que dissipou. Pedi um café para acompanhá-lo, mesmo sem contato. Fiquei esperando sair outra metáfora de seu silêncio, mas os homens comuns falam pouco, o que os tornam interessantes e misteriosos. De toda maneira, o que ele disse antes já era suficiente.

Paguei a conta e saí sem pressa, afinal, o tempo jaz. Desacelerei e deixei que as coisas se conduzissem por seu próprio ritmo. Cheguei ao meu destino, cumpri meus compromissos e retornei sem a agonia corriqueira. Assim, fui conduzindo meus dias, com parcimônia, sem alvoroço. Para quê? As horas mudam a cada geração, as pessoas pensam diferente, o correr do compasso é distinto e depende dos novos eletrônicos e digitais; a biologia do sono está mudada e assim seguirá mudando. O tempo morreu, e faz tempo.

Não fiz desse axioma uma premissa científica. Apenas um conselho para mim mesmo. Desde o Big Bang, o tempo é o grande mistério da natureza compreendida pelo homem. A partir de quando os Babilônios começaram a contar as horas, até mesmo depois das descobertas de Galileu Galilei, tudo está devidamente ao seu entorno, não mais como escuridão e claridade, mas como grandeza física. O tempo não tem direção exata o que torna a distinção entre passado, presente e futuro uma firme e persistente ilusão, como disse Albert Einstein.

O fato é que tenho vivido minha vida muito em função de não temer o medo. Mesmo nas horas difíceis, como perdi quem tanto amava, me fiz lembrar que não se pode esperar mudanças, deve-se fazê-las, ainda que doa. Nessas viagens que faço para sobreviver, prestando serviço de região em região, levando e trazendo mercadorias, vendendo e comprando, só preciso saber que é hora de comer e dormir. O restante é opaco e deve guiar-se apenas pelos compromissos assumidos, embora uma hora marcada seja apenas uma determinação arbitrária e agressiva. Nem sempre a pressa gera riqueza ou resultados. As alegrias nem sempre dependem da urgência.

Na última semana decidi mudar minha rota e passar novamente naquela beira de estrada que, desde então, não passava. Intrigava-me o fato de uma frase tão firme em minha cabeça ser tão incomum nos demais lugares por onde ando. Teria sido mesmo uma filosofia daquele senhor de rosto marcado ou seria algo comum, um ditado específico daquele povoamento? Precisava descobrir.

Parei no mesmo local, basicamente como o deixara tempos atrás, inclusive as mesmas caras atendendo. Perguntaram o que eu queria, pedi uma fatia de torta e um refrigerante. O calor era igual, embora fosse mais cedo que da outra vez. Passei um tempo tentando ouvir alguma coisa ou criando coragem para perguntar algo. Perdi meio que o interesse e me perguntei por que me demorar com aquilo. Paguei a conta e ao me dirigir ao carro alguém acenou pedindo carona até povoado mais próximo. Acenei positivamente e, antes de abrir a porta, o ouvi se despedindo.

— Dona Maria, vou embora que “o tempo morreu”.

Confirmei então que se tratava de uma frase comum por ali. No carro, ainda em baixa velocidade, perguntei ao sujeito, meio magrela, mas também com suor de quem trabalha em serviço braçal, por que as pessoas daquele lugar usavam frase tão filosófica. Quem teria dito pela primeira vez, algum professor de Física, algum estudioso?

— Não —, o homem riu explicando que tinha ido resolver um compromisso, mas a outra pessoa lhe deu perdido. Não tinha mais o que fazer. E a frase tinha sido seu Zezinho da carroça.

Deixa que esse tal Zezinho chegou um dia em um bar, cabisbaixo e doloroso, pediu uma lata de pinga e soltou essa para a surpresa e tristeza dos presentes: — Me traga uma cachaça que o Tempo morreu. E o Tempo, nesse caso, era seu burro velho de guerra, principal parceiro de trabalho. Ganhou esse apelido porque na hora certa, todos os dias durante mais de 15 anos, se aproximava da carroça na mesma hora, sem precisar ser chamado. Era um burro cumpridor de horário, que chegava no tempo. Obviamente, a frase de seu Zezinho trouxe consigo uma informação superior ao fato, mas também uma expressão fatalística, como a já conhecida “Inês é morta”.

Não era objetivo do carroceiro criar ditados, nem da população constituir filosofia, mesmo assim isso aconteceu. Não por minhas observações, mas por eles mesmos ao repetirem a frase com frequência nos momentos oportunos. Eu apenas a levei comigo e a distribuí em outros lugares. Não é mentira que o tempo está morto, é a mais pura verdade. Não para a exatidão matemática, pois se o tempo morrer nada sobrará. Está morto para o homem que não o compreendendo deve-se deixar guiar pela vida sem a angustiante dor de correr contra o que não se pode. Foi o que pensei no resto da estrada, pois, além daquela frase, agora tinha uma história para contar.

Escrito por Paiva Rebouças

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