Por Ana Paula Cadengue
“Lembra-nos ainda — não faz muito tempo — quando surgia em Natal uma poetisa, diferente, ensaiando ousados voos, triturando velhas regras e fórmulas, pisando venerados tabus, seguindo no verso livre e desenvolto à escola modernista. Era Helen Ingersoll, uma desconhecida filha de Mossoró, descendente de estrangeiros. De um momento para outro, num espaço de tempo nada considerável, a guria de porte altivo e palestra cheia de calor que toda Mossoró conheceu encontrava a poesia e se encaminhava cônscia de suas responsabilidades e dona de sua arte pelos caminhos das letras”, assim contava o jornalista Dorian Jorge Freire em 1951 sobre a figura que encantou e chocou a sociedade potiguar nos anos pós-guerra pela sua inteligência, liberdade, beleza e ousadia.
“Esgotada de beleza e vida
Fundi sensações estranhas
Ritmos novos e fortes
Para as minhas mãos inadaptadas.
Sonhei o corpo informe da noite
Nos meus braços
E carreguei enferma
O próprio deus por sobre os mares,
Iludida de ventos frios e amores.
(…)”
Destinada aos Deuses – 1949
Nascida em Mossoró, aos 13 de março de 1930, filha do mineiro canadense Willian John Ingersoll e da professora mossoroense Maria Elisa da Silva, Helen Ingersoll sentiu sua inclinação literária muito cedo, ainda em plena infância. De acordo com os registros de seu tio Assis Silva, aos 8 anos de idade, escreveu uma pequena peça de teatro, tendo sido muito elogiada por sua preceptora, professora de inglês, Irmã Carmelita.
Ainda segundo os registros de seu tio, a jovem Helen era uma dedicada leitora e diplomou-se como professora primária, pela Escola Normal de Mossoró. Poetisa, colaborou em diversos órgãos de imprensa de Mossoró e Natal, onde foi morar em 1947 e continuou na vida literária.
Que ânsia de Bem e de Infinito, essa do meu coração!
De que vaga procura de uma felicidade ignota e desconhecida
Se nutre, humildemente, o meu ser!
Ó eterna interrogação da minha alma,
Desproporcional, ousada interrogação
No mundo limitado da matéria…
Desproporção
O poeta Laélio Ferreira lembra que Helen Ingersoll chegou em Natal no final da década de 1940, sendo vizinha de sua família, onde foi pupila de Othoniel Menezes e da sua Maria, a pedido de Dona Maria Elisa. “Lia muito, falava inglês com fluência, fumava muito, roía as unhas, bebia cerveja”.
Laélio também diz que Helen “era bonita, alta, de olhos verdes. Um dia, pegou um Catalina da NAB, no Potengi, e partiu para o Rio. Antes da morte de Othoniel e de sua Maria, no Rio, visitava-os, vez por outra. Na ‘Cidade Maravilhosa’ foi professora, funcionária do Banco do Brasil e advogada”.
Tenho uma íntima convicção
De que o meu destino será belo,
Belo como a noite no seu silêncio.
– Suprema revelação!
Ó quietas estrelas
No espaço sem princípio,
Eu vos seguirei, cantando
O meu canto de glória e de amor.
E eu serei forte e feliz!
E a montanha do tempo!
Ou o pássaro que grita mansamente!
Palpita em mim mesmo
O coração do destino.
– Destino claro e pleno!
Revelação – Natal, agosto de 1947
A partida de Helen para o Rio de Janeiro, sem nunca mais pisar em solo potiguar, suscitou inúmeras interpretações. Para o jornalista e professor Tarcísio Gurgel, no livro “Helen Ingersoll, poesia”, organizado por Cláudio Galvão, “dificilmente será esclarecido o real motivo da sua partida para o Rio de Janeiro, quando era crescente a admiração conterrânea por sua inteligência e beleza. E ela continuará ainda por muito tempo a desafiar quem se dispuser a pesquisar sua vida e sua produção literária”. Mas, aponta que muito provavelmente se deu pelas “brumas do preconceito e da incompreensão”.
Em texto no jornal O Mossoroense, em 1951, Dorian Jorge Freire já delineava tudo que a presença da jovem e bela poeta suscitava. “Apareceram, então, debates acalorados, discussões intempestivas sobre Helen. As opiniões de seus conterrâneos sobre sua poesia eram as mais apaixonadas e diversas entre si. Uns, viam na poetisa Helen Ingersoll uma jovem de inteligência brilhante, de espírito lúcido, de poética extraordinária. Outros, secamente, procuravam inutilmente não tomar conhecimento da existência da poetisa, desdenhando-a e criticando-a com acrimônia. Helen era para estes últimos, uma menina endiabrada, terrivelmente fria e calculista, extravagante no seu realismo pornográfico”.
E continua, talvez, na melhor explicação para todas as sensações despertadas: “Helen, entretanto, não era nada disso. Era o meio-termo entre as opiniões em choque. Era, apenas, uma moça realmente dona de uma inteligência brilhante, de um espírito irrecusavelmente superior, endiabrada e entusiasmadíssima com a descoberta de si mesma. Era, tão somente, uma poetisa de fato que aparecia”.
“Eis que carrego comigo
Os sete pecados
E o meu ventre perdido
Reclama um oitavo.
(…)”
A que Peça – 1949
O equilíbrio
Atraem-me os desânimos florestais.
Os desmaios de hirtas rosas. Atrai-me
O doce cacto. Entorpece-me os nervos
O beijo nu de um ramo em minha face.
Eu sou doente e negra. Em mim circulam Sofreguidões, anseios, crus delírios,
Êxtases dolorosos me atormentam,
Oferto-me ao amor dentro de abismos.
Em troca, bebo calma na clareira.
Nela sonho cabana, mão gelada
Posta em meu seio, vento que me cubra.
O mergulho num pântano me enfada. Encontro no contato do lodo
O equilíbrio às minhas mãos crispadas.
Rio — 1950
Kelly Lira, cantora e artista plástica pintou O equilíbrio de HI Diário de Natal, 2 de janeiro de 1950
É através dos relatos de Dorian que se acompanha um pouco do que Helen Ingersoll encontrou em seus primeiros anos de Rio de Janeiro, suas aventuras literárias e um pouco de sua vida como professora. “Alguns afirmavam mesmo que em Helen a poesia fora uma febre passageira, um impulso efêmero, uma criancice inconsequente. Ela não passava agora, segundo eles, de assídua leitora de poetas modernistas, além de ótima funcionária e aluna exemplar”.
Mas, para o jornalista, a despeito da distância e até um certo ‘apagamento’ de seu nome na intelligentsia potiguar, “Helen existe e continua poetisa”.
Tenho estrelas na alma e um céu interior.
Vozes divinas cantam dentro de mim mesma,
Vozes de exaltação e de glória,
Vozes loucas, infinitas.
Um Deus habita em mim.
Ele me compreende e me perdoa,
E não me ama por me ter criado
– Ele não me criou, Ele nasceu comigo.
Ama-me porque faz parte de mim mesma,
Porque possui todos os membros do meu corpo
E penetra na minha alma
Como num mergulho eterno, infinito…
Poema o Deus que sinto em mim mesma – 13 de março de 1949.
Helen Ingersoll faleceu no Rio de Janeiro em 2011, aos 81 anos de idade, sem nunca ter voltado ao Rio Grande do Norte. E é numa forma de resgate, como uma visita a pessoas e locais, uma excelente ocasião para se fazer novos amigos e despertar paixões, que a Sociedade Amigos da Pinacoteca lança neste sábado, 28, na 10ª Feira de Livros e Quadrinhos de Natal — FliQ o livro “Helen Ingersoll, Poesia”.
Organizado pelo pesquisado Cláudio Galvão, o livro reúne quatro crônicas e
20 poemas ilustrados pelos artistas plásticos Laércio Eugênio, Careca, Kelly Lira, Yáscara Samara, Marcelo Morais, Vicente Vitoriano, Isaías Medeiros, Eduardo Falcão e Marcelo Amarelo, além de textos de Tarcísio Gurgel, Dorian Jorge Freire, Laélio Ferreira de Melo e Fausto Cunha.
Ana, no seu belo texto, que retrata uma história que o RN desconhece, me permita, aflora, pela sutileza, especialmente, na síntese, a figura de Rogerio Cadengue, seu pai, um dos grandes nomes da Imprensa potiguar. Parabéns!
Herbert Mota