Por Clauder Arcanjo
Expulso de casa, Ferreira ganhou a rua. Apesar do sol forte, sentia um frio na barriga. Caminhando por entre os becos de Licânia, tudo lhe parecia estranho, agressivo. A sentença da companheira Gervásia ainda zoando-lhe nas oiças:
— “Domênica, Domênica…” Chega! Esta foi a minha última noite em claro. Seja, então, feliz. Comigo, não.
Ele parou frente a Matriz, olhou para a imagem da Senhora Sant’Anna e ficou como se a lhe pedir a bênção (ou seria a piedade?) dos Céus. Tudo a lhe girar na memória, palavras e cenas confusas, como se sopradas em tom de reprovação a suas últimas atitudes.
— … Chega! Esta foi a minha última noite em claro. Seja, então, feliz. Comigo, não.
“Minha Madrinha, proteja os meus passos. Preciso da sua luz no meu caminho”. Ferreira não sabia se rezava ou se implorava; com pouco, ajoelhou-se e ficou cabisbaixo no adro da igreja.
Um gaiato passou de bicicleta e jogou-lhe um achincalhe:
— Andou bebendo, Ferreirinha?!
Não teve coragem de responder. Calado permaneceu, perdido numa onda de pensamentos soltos, retalhados, a roubar-lhe o sentido.
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Não se sabe quanto tempo lá ficou. Ajoelhado, sob o sol forte da província. Acompanhado tão somente pelos comentários das pias Filhas de Maria, a reprovar sua situação a partir das calçadas próximas:
— A verdadeira esposa já botara ele para fora de casa. Domênica Melgaço cansou de ser besta.
— Homem que não leva o pão para dentro do seu lar, comadre, merece mesmo um pé na bunda.
— E agora, pelo jeito, a que lhe deu guarida, a tal de Gervásia, não quis mais sustentar o malandro…
Nesse exato momento o padre Araquento saiu da casa paroquial, caminhando em direção à sacristia.
— Sua bênção, padre — rogaram, em uníssono, as Filhas de Maria.
O pároco, sem mudar a velocidade dos passos, devolveu-lhes:
— Que Deus nos abençoe e que Ele modere os nossos juízos.
— Assim seja.
— É bom cuidarem do almoço. O dia já vai alto.
Tal diálogo as dispersou, fazendo com que elas deixassem as calçadas e sumissem no interior de suas casas.
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Ao chegar à sacristia, o sacristão saudou o velho pároco:
— Bom dia, padre Araquento.
— Bom dia, Batista, o que temos para hoje? — indagou.
O sacristão dirigiu o olhar na direção de uma senhora que, sob um xale negro, estava ajoelhada próxima ao confessionário. Era Gervásia.
— Bom dia, minha filha. Em que posso lhe ser útil?
— Padre, estou sofrendo tanto, eu queria… — um choro forte embargou-lhe a voz.
Após ouvir toda a história que a afligia, aconselhou-a:
— É grande a misericórdia divina. Não há sentimento maior do que o perdão, dona Gervásia. E nunca devemos nos envergonhar do amor. Vá em paz. E que Deus os guarde.
Gervásia recompôs-se, e um sorriso tímido assomou-lhe à face antes tão sofrida.
Minutos depois, enquanto o pároco rezava aos pés de Maria Santíssima, ele foi chamado pelo novo coroinha, a pedido do sacristão.
— Seu padre, há uma outra senhora aguardando junto ao confessionário.
Desta feita era Domênica Melgaço.
— Bom dia, senhora Domênica.
Sem perda de tempo, Domênica inquiriu-o:
— Seria pecado eu recebê-lo de volta?
— Quem, dona Domênica Melgaço? — indagou, aturdido, o padre Araquento.
Ela baixou o tom de voz, aproximou-se, levantando levemente o xale azul-celeste, e disse-lhe:
— O meu esposo… o Ferreira.
Padre Araquento levantou os olhos em direção ao madeiro, rogando a Cristo e a todos os santos:
— Meu Deus! Que seja sempre grande a misericórdia divina.
Domênica Melgaço ainda ponderou:
— Ele deve estar sofrendo… e a Santa Madre Igreja nos uniu: na saúde, na doença, na alegria, na tristeza.
Lá fora os pardais chilreavam nas copas dos benjamins, enquanto o relógio da torre da Matriz de Sant’Anna anunciava o meio-dia.
*Escritor e editor, autor dos livros O Fantasma de Licânia, Mulheres Fantásticas, entre outros.
clauderarcanjo@gmail.com
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