A voz rascante do sacristão ecoou por toda a nave da Matriz de Sant’Anna:
— Padre Araquento! Padre Araquento! Deus é grande, e enorme a Sua misericórdia.
O velho pastor, cabisbaixo, indagou-lhe:
— O que foi desta vez, Batista?
Afobado pela novidade e pressa com que adentrara a igreja, o sacristão precisou recuperar o fôlego. Com as palavras em atropelo e a respiração ofegante, anunciou:
— Antes que as duas mulheres saíssem da igreja, o bom Zequinha recolheu o Ferreirinha aos seus cuidados. Evitando assim… o senhor bem pode imaginar. As duas pretendentes perante o Ferreira. A disputa ou, quem sabe, a briga… tudo na porta desta Casa de Cristo. Deus é grande, e enorme a Sua misericórdia.
Padre Araquento elevou a face, marcada pela conversa que tivera com Gervásia e, logo em seguida, com Domênica Melgaço. As palavras de aconselhamento a Gervásia ainda a ressoarem em sua mente:
— É grande a misericórdia divina. Não há sentimento maior do que o perdão, dona Gervásia. E nunca devemos nos envergonhar do amor. Vá em paz. E que Deus os guarde.
Balançou a cabeça, na vã tentativa de se livrar daquele diálogo, mas, depois, como se tudo novamente diante dos seus olhos, a indagação de Domênica, a ex-esposa do Ferreirinha:
— Seria pecado eu recebê-lo de volta?
Padre Araquento ajoelhou-se frente à imagem de Maria Santíssima, a rezar fervorosamente:
— Mãe do Altíssimo, madrinha da Santa Igreja, guie os passos deste servo do Senhor. Não sei como agir, e sinto que caí em pecado…
Enquanto orava, as lágrimas corriam na sua face, como se a mente e o corpo invadidos por uma consumição indescritível.
— Mãe do Altíssimo, madrinha da Santa Igreja, guie os passos deste servo…
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Ao entrar em casa, levando pelo braço Ferreirinha, Zequinha comunicou a Djanira:
— Minha filha, arme uma rede para nosso compadre. E, depois, lhe prepare uma boa refeição.
Djanira, ao ver o estado de sofrimento daquele homem, ficou aturdida. Zequinha teve que repetir:
— Filha, filha, a rede para o compadre. E, depois, a refeição.
Diante da rede, armada no quarto mais ao fundo, Ferreira não se mexia, apenas de pé e de cabeça baixa, a repetir a mesma sentença, seguidas vezes:
— Eu não mereço: nem Domênica, nem Gervásia… eu não presto… Eu não mereço: nem Domênica, nem Gervásia… eu não presto…
Zequinha fez com que Ferreira se deitasse, encostou a porta e deixou-o sozinho, não sem antes adverti-lo:
— Por ora, compadre, não pense em nada, procure apenas descansar. Deus é Pai, e ninguém sabe os desígnios Dele. Descanse.
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— A bênção, padre — rogaram, em uníssono, Zequinha e Djanira, quando o padre Araquento entrou em seu lar no início da noite.
O velho pároco abençoou-os:
— Deus os proteja e que Ele continue iluminando este lar.
Em seguida ele foi pedindo:
— Meu caro Zequinha, encoste a porta. Preciso ficar a sós com o casal e com o… senhor Ferreira.
Zequinha encostou a porta de entrada, cuidando também de cerrar a janela que dava para a rua.
— Vou trazer um café — informou Djanira.
Em sequência, Zequinha declarou:
— Nosso compadre está sofrendo demais; ele não para de pronunciar, numa espécie de suplício: “Eu não mereço: nem Domênica, nem Gervásia… eu não presto…”. Num choro constante a embargar-lhe a fala.
— Eu bem sei, eu imagino… — respondeu padre Araquento.
Djanira já voltava da cozinha com a bandeja de café, acompanhada pelos biscoitos amanteigados, ponto fraco do padre Araquento.
— Café, seu padre?
— Não, querida dona Djanira.
— E os biscoitinhos de que o senhor tanto gosta? — insistiu.
— Não, hoje nada me assenta no estômago.
Um silêncio na sala. Zequinha, Djanira e o padre Araquento calados. Como se não soubessem o que declarar naquele momento.
— Preciso conversar com o senhor Ferreira — solicitou o padre Araquento.
Foi, então, conduzido ao quarto dos fundos.
— Deixem-me sozinho com ele. E não quero ser interrompido. Por ninguém.
Zequinha e Djanira voltaram à sala. Djanira, para ocupar o tempo, resolveu oferecer um terço em honra de Sant’Anna.
Pouco depois alguém bateu à porta:
— Quem é?
— Sou eu: Gervásia.
— Mas…
Sem esperar resposta, dona Gervásia foi entrando. Sentou-se numa cadeira ao canto; as mãos aflitas, um xale negro a encobrir-lhe a cabeça.
Pouco depois, outro chamado:
— Quem é?
— Domênica Melgaço.
— Mas…
Dona Domênica foi também entrando. Optou por sentar-se na poltrona, frente à cadeira em que estava Gervásia. As mãos inquietas, e um véu azul-celeste encobrindo-lhe a face.
Passaram-se alguns minutos, Zequinha e Djanira com as duas senhoras; enquanto o padre Araquento conversava no quarto com o Ferreirinha.
De repente, os passos do pároco. Mal chegou à sala, perguntou:
— Boa noite, minhas filhas. Em que posso lhes ser útil?
— Padre, estou sofrendo… eu quero cuidar dele novamente — disse Gervásia.
— Quero recebê-lo de volta! Eu sou a sua legítima esposa, perante Deus e a Santa Igreja — exigiu Domênica.
O silêncio, desta feita mais pesado.
— É grande a misericórdia divina. Não há sentimento maior do que o…
O padre Araquento foi interrompido pela presença de Ferreira das Mercês. Marcado pelo sofrimento, ele solicitou às duas:
— Vão em paz. E que Deus as guarde.
— É sempre grande a misericórdia divina — emendou padre Araquento.
Gervásia e Domênica Melgaço se entreolharam, com as mãos rijas enrolavam seus xales; pouco depois saíram.
O relógio da Matriz marcava dez horas. As corujas circunvoavam a Praça do Poeta, indício de maus presságios em Licânia.
Clauder Arcanjo é escritor e editor, autor dos livros O Fantasma de Licânia, Mulheres Fantásticas, entre outros.
clauderarcanjo@gmail.com
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