— Domênica, Domênica, encontraram o nosso… Digo, o Ferreirinha.
— Deus é grande, Deus é grande! Eu nunca perdi a fé — gritou Domênica, abrindo a porta de casa para a entrada de Gervásia.
Quando se viram frente a frente, as senhoras perceberam um quê de estranheza; ou seria sentimento de culpa? Desde que surgira aquele bilhete — “Enquanto duas damas lutam entre si para a posse do Ferreira, ele se entrega aos mistérios de uma cartomante…” —, tudo se dera muito rápido: José Ferreira das Mercês não mais aparecia, a boataria de que ele agora estava sob os cuidados da cartomante Marlúcia de Oxum, o ciúme. E, depois, a entrada de Marlúcia no hospital de Licânia, vítima de uma surra descomunal. Em seguida, sua “partida” da cidade, sem mesmo dar tempo ao delegado de colher o seu depoimento.
E, o pior, ao ter ciência do ocorrido, Ferreirinha tomou de empréstimo a velha Rural do bom Zequinha, e saíra à procura de Marlúcia.
Segundo as más línguas, ao encher o tanque da Virgulina no Posto Galvino, Ferreirinha confidenciara ao bombeiro:
— Tudo por minha culpa. Pobre Marlúcia!
Semanas se passaram, nenhuma notícia do paradeiro de Ferreira. De início, Gervásia e Domênica mantiveram a discrição, até porque o senhor delegado acompanhava cada passo das duas. Na certa, suspeitando de que estivessem envolvidas no caso da agressão à cartomante. Com pouco, elas não se aguentando mais, resolveram fazer uma visita ao senhor Zequinha Arcanjo, com o intuito de “saber notícias da Virgulina”.
— Nada, minhas senhoras. Mas, bem sei, Virgulina o trará de volta. Qualquer novidade, mandarei lhes avisar — comprometeu-se.
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Já brotava entre elas o remorso. Como se estivessem empurrado definitivamente o bem-amado para os braços da dita “terceira via”.
— E se ele nunca mais voltar?
— Não pense nisso.
— Ora, não pense nisso! Ele sempre se revelou abobalhado quando uma pessoa chorava aos seus pés. Imagine ela, toda ferida, se fazendo de perseguida, de vítima dos ciúmes das…
— Você fique calada, Domênica. Parede aqui nesta terra de muro baixo tem ouvidos bem atentos. Se isso chega ao delegado… ai, meu Deus!, melhor nem pensar!
— E eu lá me importo. O problema é que jogamos a caçada no mato, como dizia meu velho pai. Nem a matriz, nem a filial, agora quem se lambuza com o mel do Ferreirinha é a…
— Vá para casa, e procure serenar seu espírito, mulher. Logo teremos novidades. Entreguei o desvendamento desse mistério a Santa Rita de Cássia, sem falar das minhas orações a Sant’Anna e minhas promessas a padre Cícero.
— Eu rezei tanto que acho que Cristo está nos punindo, Gervásia. Não era para termos feito…
— Não quero ouvir mais nenhuma palavra. Vá. Não se deve nunca perder a esperança. Tenha uma boa noite.
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As duas agora paradas, na sala da casa de Domênica, com a notícia de que Ferreirinha das Mercês fora encontrado.
— E como ele está? Quem o encontrou? Sozinho?… — perguntou Domênica, uma interrogação atrás da outra.
Tudo ainda envolto em mistérios.
— Só sei que ele permanece sob cuidados médicos no Hospital Dr. José Arcanjo Neto. O delegado deu ordens expressas para ninguém ter acesso ao quarto dele. O cabo Jacinto Gamão até montou guarda no hospital.
— Vou me arrumar depressa. Eu tenho direito a receber informações, pois…
— Nós temos direito. Nunca esqueça: nós. Estamos juntas, sempre juntas. Concorda?
— Sim, claro. Mas, creia-me, a titular sempre tem primazia, pois…
— Não tem pois, nem depois… Ou ficaremos juntas, ou prestarei meu depoimento ao delegado…
— Tudo bem, tudo bem. Vamos, então, nos apressar.
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Ao chegarem ao hospital, Zequinha já estava na recepção.
— Bom dia, seu Zequinha. Como ele está?
— Bom dia, minhas senhoras. Está ainda desacordado, recebendo soro. Encontraram ele desmaiado dentro da Virgulina; esta, parada no meio da mata, de tanque vazio. Pane seca.
Repararam que o cabo Jacinto Gamão pusera-lhes os olhos de samango, como se a observar cada reação delas.
— As senhoras têm algo mais a declarar acerca do caso da agressão à senhora Marlúcia de Oxum? — Era o delegado que entrava e, de surpresa, partia para sondá-las.
Elas se entreolharam, esboçaram uma nesga de risada, e lhe responderam, uníssonas:
— Mistérios, mistérios.
O cabo Jacinto levou a mão nervosa ao seu indefectível cacete de jucá, sendo contido pelo olhar de cautela do delegado. Este, experiente no laborar detetivesco, sabia de antemão que teria à frente um caso por demais complexo, e misterioso.
*Escritor e editor, autor dos livros O Fantasma de Licânia, Mulheres Fantásticas, entre outros.
clauderarcanjo@gmail.com
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