Sobre

— Tô com a cara boa hoje, hein? — Jessé comenta enquanto ajusta o retrovisor interno do carro.

Sua esposa, Amanda, sentada no banco de passageiros, parece confirmar o comentário do marido com um leve sorriso.

Todo dia às sete horas da manhã, sempre neste mesmo horário, eles saem de casa, que fica em Candelabro, bairro nobre da capital. Primeira parada é no Hospital Onofre Poles, onde ela atende na pediatria, e que fica no caminho do escritório da empresa que ele comanda, no bairro vizinho Ritol.

É como um ritual, dia após dia. No trajeto combinam as tarefas de casa, trabalhos, viagens, fazem planos e criam soluções ao que porventura esteja fora da ordem. Um casal focado, ou metódico — como queira —, porém com virtudes e brincadeiras como em qualquer outro casamento.

— Esquente, não, você também está linda hoje — diz ele.

Os dois riem juntos.

E seguem a mesma rotina: casa, trabalho, casa.

Aos finais de semana os dois têm encontro certo com o padre Almir, na Paróquia de Santa Rita, no mesmo bairro onde residem. Missa, muito bate-papo após a celebração, em um barzinho próximo à igreja, além de reunir as duas famílias, que também são assíduas semanalmente no templo religioso. E se dão por satisfeitos com esse hábito. Mudando somente quando há compromissos fora da cidade. 

Sabe aquela coisa de almas gêmeas? Pois é. Eles acreditam piamente que são. Aliás, o casal se conheceu na adolescência, surgindo um namorico à época. Depois perderam contato, quando se aprofundaram nos estudos, Amanda na área médica e Jessé em ciências contábeis, depois teologia e uma pós-graduação em filosofia. O autoconhecimento desse período, aliás, aliado à sua expertise como chefe de um trabalho desenvolvido na área da Justiça Federal, deu-lhe bagagem à produção de sua startup que, em suas palavras, “tenta reforçar a entrada de pessoas negras no mercado de trabalho e também sensibilizar os aliados à uma sociedade transformadora”.

Passada essa fase, os dois se reencontraram por acaso durante uma reunião de trabalho voluntariado da Igreja Católica nas áreas de medicina e tecnologia. A partir daí não mais se separaram. Um período de “revelação e de privações”, como eles dizem. O fato é que conseguiram se manter juntos, o que ajudou sobremaneira a prosseguirem com a ong, ajudando necessitados das comunidades carentes com atendimento médico, roupas e comida, através de doações.

— Isso me dá uma “felicidade incrível” — diz Amanda em suas reuniões. E complementa: “satisfação de fazer o que sempre quis quando criança: ajudar as pessoas”.

— Sou um pescador que não sobreviveu da pesca — avisa Jessé em suas palestras em encontros beneficentes. De origem humilde, família de pescadores, seu pai, Adonias Melo, conseguiu a duras penas dar-lhe seu ingresso em uma boa escola. obteve a melhor opção, digamos, na capital, quando o matriculou no conceituado Colégio Salustiano. E nunca deixou que pescasse. A não ser de forma recreativa. “Seu Adonias sempre se achou injustiçado por não ter tido a chance de estudar, de nunca ter contado com o apoio do pai, também pescador. Muito pelo contrário. Foi obrigado a viver a maior parte de sua juventude em alto-mar, sem as mínimas condições de estudo, fadado ao cheiro perene de peixe encruado nas narinas” complementa.

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— Vamos logo, Jessé. Deveria ter saído mais cedo do trabalho, amor. Não estaríamos tão atrasados — reclama Amanda.

— Tô indo. Tô indo. Você tem razão! — responde Jessé.

O dia foi corrido e ele ainda teve que passar no Pardal Shopping e escolher o presente que dará logo mais ao seu pai, o aniversariante do dia.

Amanda já está pronta e tenta organizar na cama o que Jessé irá vestir. No banho, Jessé lembra de como sua vida é diferente em relação a de seus amigos de infância, mortos violentamente ou pelas drogas, vivendo até hoje na área ribeirinha. Como em um filme,  lembra da luta diária de seu Adonias.

— Será uma grande noite. Aniversário de oitenta anos. Ele merece tudo de bom. Tudo mesmo — balbucia.

— Bora, Jessé!

— Já estou indo. Cadê minhas meias?

— Jesus do Céu. Vá sem meias, Jessé! — sugere Amanda.

Já estão a cinco quadras de distância de onde moram quando Amanda avisa que esquecera o presente de seu Adonias.

— Desculpa, meu amor, não fique bravo comigo — pede Amanda.

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Sentiu o impacto de um tiro atravessando-lhe o ombro. Amanda estava caída próximo ao sofá, na sala de estar. Não se movia. Ainda conseguiu ouvir seu gemido, mas isso se tornava cada vez mais inaudível. Viu de relance alguém se apoiando à porta de entrada enquanto baforava um cigarro. Um vulto na entrada do corredor que dá acesso ao quarto do casal. Um outro indivíduo estava sentado no sofá empunhando uma arma.

— Não era pra vocês voltarem, porra! Caralho. Foderam com tudo, porra! — Jessé ouviu baixinho a reclamação de um dos meliantes. Sangrava bastante. Estava quase desmaiando de tanta dor.

O casal foi surpreendido no retorno à casa quando Amanda pegaria o presente que esquecera. O regresso, realmente, não estava nos planos. Um comparsa esperara Jessé no jardim quando ele veio saber o porquê da demora da esposa. Amarrados, as lágrimas desciam do rosto de Amanda. Ele tentava tranquilizá-la apenas com o olhar. Era a única coisa que podia fazer por enquanto. Em seu íntimo, rogava a Deus pelo bem da esposa.

— Nossa Senhora da Conceição, nos proteja. Nos guarde. Por Jesus Cristo — pedia Jessé em oração.

Ferido, com o ombro sangrando, recebe um golpe na cabeça, uma coronhada desferida por um dos assaltantes, que o segura pelo pescoço obrigando-o a assistir ao estupro de Amanda. Mesmo com a vista turva, assiste a um show de horrores.

Aquilo tudo parece não ter fim. Em seu depoimento, na delegacia, Jessé não soube dizer quantos estavam na ação violenta nem quanto tempo permaneceram. Mas lembra que foi na saída que eles dispararam uma arma na direção de Amanda.

A viu sem movimento algum, sentada, com seus pulsos amarrados na parte de trás do corpo, tendo o braço do sofá como apoio da cabeça. Foi a última imagem que ele disse se lembrar antes de perder completamente os sentidos.

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“Amanda! Amanda!”, a chamava todas as vezes que acordou no período mais dramático de sua recuperação no hospital. Entre um lampejo e outro de sobriedade, falava confusamente buscando notícias da esposa. Mal conseguia entender o que os enfermeiros diziam, apagava novamente.

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Seis meses de fisioterapia. O tiro no ombro resvalou tendo o projétil se alojado na coluna à altura do pescoço. Por pouco, muito pouco, não o deixa paraplégico.

— Agora é tentar se reorganizar — lhe diziam as pessoas mais próximas.

A vida não fazia mais sentido. Jessé se tornou recluso. Suas noites são de insônia, tristeza. Fica imóvel na sacada de casa olhando a esmo. A única coisa que lhe vem à cabeça é a última frase “não fique bravo comigo!”, dita por Amanda.

— Mas como eu poderia ficar bravo com você, meu amor. Com Deus, sim. Ele poderia ter me levado. Você, não. Doce, pura, coração gigante. O pecado foi meu, que decidi deixar de exercer o sacerdócio. Por acaso seria por isso esse meu castigo, meu Senhor?! — repete a pergunta à exaustão noite após noite, após o fatídico episódio.

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— É bom você começar a falar. Antes de perder mais um dedo! — balbucia no ouvido do algoz de sua esposa, que aterrorizado não consegue sequer abrir a boca.

Primeiro, Jessé arranca os dedos de uma das mãos do patife, um a um.

— É bom você começar a falar. É bom você começar a falar! — repete irado.

Enfia-lhe a ponta de um bisturi no olho, e o indivíduo aos berros pede por socorro. Jessé preferiu não o amordaçar, pois deseja que todos da Vila Muriçoca ouçam os gritos de desespero. “Quanto mais alto, melhor”, pensou.

— Só quero um dos nomes. Somente. Tenho certeza de que seu amigo te entregaria se aqui estivesse. Melhor você acabar com esse sofrimento. Desembucha! — pediu ao criminoso, enquanto corta a pálpebra com o bisturi que pertenceu à sua companheira. Com o desmaio do bandido, Jessé olha entre brechas da porta e vê que nas ruelas da Vila Muriçoca há bastante movimento, estão à procura do local de onde partem os gritos. Estão vindo em direção ao barraco do “acerto de contas”. A Vila Muriçoca é uma comunidade “barra pesada” aqui da capital. Ele, particularmente, conhece muito bem, pois desenvolve vários trabalhos junto aos moradores. E sabe que agora corre perigo se permanecer naquela situação por mais tempo.

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Olha de longe o fogo no barraco onde estava há pouco, enquanto rema o pequeno barco de pesca pelo rio Togenpi.

 (Continua na próxima edição)

Escrito por Túlio Ratto

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