Texto: Alex Gurgel
Uma modesta comparação na busca por uma identidade literária nos romances destinados ao público infanto-juvenil.
“Há maior significado profundo nos contos de fadas que me contaram na infância do que na verdade que a vida ensina.” (Schiller)
Nessa enorme guirlanda da literatura infanto-juvenil, alguns aspectos, usados pelos escritores para contar uma história, podem ser observados durante a narrativa de contos e romances. A psicologia literária infantil (ou juvenil) impregnadas nas entrelinhas dos romances, trás a tona algumas sutilezas que vem sendo utilizadas por autores de literatura infantil desde Charles Perrault, como observa Ligia Cademartori no seu livro “O que é Literatura Infantil”. De acordo com a autora, algumas questões apontam para a natureza dessa literatura como, por exemplo, a preocupação com o didático e a relação com o popular.
Fazendo uma ligeira leitura comparada entre os romances “A Bolsa Amarela”, de Lygia Bojunga e “As Aventuras de Tom Sawyer” de Mark Twain, pode ser percebido algumas coincidências didáticas, onde a Literatura Infantil, por iniciar o homem no mundo literário, é utilizada como instrumento para a sensibilização da consciência, para a expansão da capacidade e interesse de analisar o mundo. Sendo fundamental insinuar que a literatura deve ser encarada, sempre, de modo global e complexo em sua ambigüidade e pluralidade.
Até bem pouco tempo, em nosso século, a Literatura Infantil era considerada como um gênero secundário, e vista pelo adulto como algo pueril (nivelada ao brinquedo) ou útil (forma de entretenimento). A valorização da Literatura Infantil, como formadora de consciência dentro da vida cultural das sociedades, é bem recente. Para investir na relação entre a interpretação do texto literário e a realidade, não há melhor sugestão do que obras infantis que abordem questões de nosso tempo e problemas universais, inerentes ao ser humano.
As narrativas procuram separar o real e o imaginário. As ações narradas referem-se a uma situação que não é vista e que só é concebida no imaginário. Segundo o crítico Jorge Larrosa, o “saber” da infância é algo muito mais radical: “nada mais ou nada menos do que sua absoluta heterogeneidade no diz respeito a nós e ao nosso mundo, sua absoluta diferença”, diz o autor quando a criança faz de conta que está usando o lado simbólico da linguagem, em ensaio no texto “O enigma da infância ou o que vai do impossível ao verdadeiro”.
“A Bolsa Amarela”, de Lygia Bojunga, é um dos mais premiados e populares livros infanto-juvenis brasileiros. Neste livro a autora conta a inteligente e divertida história de Raquel, uma menina que presta muita atenção a tudo que se passa a seu redor. Raquel é a filha caçula da família, é a única criança. Seus irmãos, com uma diferença de dez anos, não lhe davam ouvidos, porque achavam que criança não sabe coisa alguma. Por se sentir muito solitária e incompreendida, ela começa a escrever para seus amigos. Amigos imaginários. Raquel, desde cedo, tinha três vontades enormes: vontade de crescer, vontade de ser garoto e vontade de ser escritora.
Um dia, ganhou uma bolsa amarela, que veio no pacote da tia Brunilda. A partir daí, a bolsa passou a ser o esconderijo ideal para suas invenções e vontades. Tudo cabia lá dentro. A bolsa amarela acaba sendo a casa de dois galos, um guarda-chuva-mulher, um alfinete de segurança e muitos pensamentos e histórias inventadas pela narradora.
O universo narrativo de Lygia Bojunga se revela a partir da infância, atingindo temas adultos com as relações de poder e repressão a liberdade de expressão no contexto social. Dando argumentos ao leitor (criança) para se identificar com as situações que dizem respeito as personagens infantis, criando uma identificação com o pequeno leitor. De acordo com Ligia Cademartori, o romance “A Bolsa Amarela” permite a adesão ao mundo ficcional pela condução do enredo e pelo desfecho, permitindo a cartase do seu leitor, propiciando uma identificação, uma descarga emocional.
No livro “A Bolsa Amarela”, encontramos objetos lúdicos, um perfeito equilíbrio entre a liberdade do imaginário e as restrições do real. Uma menina que entra em conflito consigo mesma e com a família ao reprimir três grandes vontades que ela esconde numa bolsa amarela – a vontade de crescer, a de ser garoto e a de se tornar escritora. A partir dessa revelação – por si mesma uma contestação à estrutura familiar tradicional em cujo meio “criança não tem vontade” – essa menina sensível e imaginativa nos conta o seu dia-a-dia, juntando o mundo real da família ao mundo criado por sua imaginação fértil e povoado de amigos secretos e fantasias. Ao mesmo tempo, que se sucedem episódios reais e fantásticos, uma aventura espiritual se processa, e a menina segue rumo à sua afirmação como pessoa.
No livro de Mark Twain, “As Aventuras de Tom Sawyer”, Tom é um rapaz do campo, muito inquieto, que mora na casa da tia Polly, com o irmão Sid e a prima Mary. É com o seu melhor amigo, Huckleberry Finn, que Tom partilha as suas maiores aventuras. Os dois perseguem javalis, brincam como piratas no Rio Mississipi, e estão constantemente aprontando novas desventuras. No meio de tanta agitação, ainda têm tempo para namoros. Conhecem o perigoso Joe, o Índio, e procuram um tesouro perdido. Ao contrário das histórias tradicionais, Tom não é um menino modelo, não obedece a ninguém, não quer estudar e mente sempre para evitar castigos ou sair de situações inesperadas. O herói infantil do romance é um menino normal, inclinado a seguir suas emoções em busca do prazer da aventura do que ver a realidade. Com essa consciência, Tom não sofre nenhum castigo e não “paga” por fazer o que quer.
Entre os dois romances, encontramos traços de alegoria nas entrelinhas dos textos, onde o crítico G. Brougére destaca o objeto lúdico do brinquedo que é manipulado livremente por uma criança. A Bolsa Amarela representa o desprendimento às regras impostas pelos adultos, um brinquedo (objeto infantil) onde Raquel manipula suas vontades dentro da bolsa de acordo com as experiências vivenciadas. “O brinquedo é, assim, um fornecedor de representações manipuláveis, de imagens com volume está ai a grande originalidade e especificidade do brinquedo que é trazer a terceira dimensão para o mundo da representação”, escreveu o critico no ensaio “O Brinquedo, Objeto Extremo”.
As situações vividas por Tom Sawyer, usando a esperteza para se safar de situações inusitadas ou barganhar quando está em condições de desvantagem, mesmo que precise enganar aos outros, são manifestações em um processo de identificação com os personagens, a criança passa a viver o jogo ficcional projetando-se na trama da narrativa. Em suas aventuras, Tom utiliza sua astúcia como um brinquedo capaz de manipular, concebendo e produzindo o “brinquedo” e o transformando em objeto de representação, num mundo imaginário ou relativamente real com caça ao tesouro, travessias no Rio Mississipi, viagens ao interior de uma gruta e até a visão de um assassinato.
Ambos os textos trazem informações mostrando que o brinquedo não é qualquer imagem. De acordo com Gilles Brougére, a imagem do brinquedo deve ser manipulada no interior da atividade lúdica (a história) da criança e corresponder à lógica da brincadeira e da expectativa daquele que orienta, chamando a atenção para uma analise mais profunda da relação entre imagem e função do objeto. Uma história traz consigo inúmeras possibilidades de aprendizagem. Entre elas estão os valores apontados no texto, os quais poderão ser objeto de diálogo com as crianças, possibilitando a troca de opiniões e o desenvolvimento de sua capacidade de expressão. O estabelecimento de relações entre os comportamentos dos personagens da história e os comportamentos das próprias crianças em nossa sociedade possibilita o desenvolvimento dos múltiplos aspectos educativos da literatura infantil.
Dessa forma, os romances “A Bolsa Amarela” e “As Aventuras de Tom Sawyer”, através das identificações que os leitores estabelecem com seus personagens, desempenham um importante papel para a saúde mental das crianças, permitindo-lhes elaborar seus sentimentos mais profundos e contraditórios. É bem verdade que esse tipo de identificação, através do jogo simbólico, está presente em muitas das brincadeiras espontâneas infantis, como brincar de casinha, médico, e tantas outras brincadeiras que qualquer criança faz, sem que seja necessária a intervenção de um adulto. Mas, nas narrativas essas fantasias adquirem uma dimensão mais ampla e profunda.
Este é o poder mágico dos romances na Literatura Infantil – o poder de fazer conhecer e compreender melhor a nós mesmos – e esta a razão de sua permanência entre nós através dos séculos, mesmo frente a um mundo cheio de brinquedos e maravilhas tecnológicas. A mensagem de sucesso e segurança que os livros carregam os fazem não apenas sempre presentes e fascinantes, mas sobretudo únicos e insubstituíveis em sua importância para o imaginário infantil.
Bibliografia
BROUGÉRE, G. “O Brinquedo, objeto extremo”. In: Brinquedo e Cultura. 3ª ed. Revisão técnica e versão brasileira adaptada por Gisela Wajskop. São Paulo: Caortez, 2000.
CADEMARTORI, L. “O que é literatura infantil”. 6ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
LARROSA, J. “O enigma da infância ou o que vai do impossível ao verdadeiro”. In: LARROSA, J & LARA, N. P. de (Orgs) “Imagem do Outro”. Tradução de Celso Márcio Teixeira. Petrópolis: Vozes, 1998.
BOJUNGA, L. “A Bolsa Amarela”. 33ª ed. Rio De Janeiro: Casa Lygia Bojunga, 2004.
TWAIN, M. “As Aventuras de Tom Sawyer”. Tradução Antonio Carlos Marques. São Paulo: Editora Martin Claret, 2000.
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