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Lembrança

Por Natalia Chagas

nataliachagas76@gmail.com

Eu vi os olhos dele. Conhecia exatamente aquele sentimento. Reconhecia o sentimento porque os olhos dele eram os meus. Sem tirar nem por. Eu que por tantas vezes tinha sentido o medo profundo de perder algo tão precioso como era o amor dele, agora via o mesmo pânico nos olhos dele. Naquele momento com a praça lotada com todos os olhares da cidade nos fitando, enxerguei que algo de muito caro ele temia em perder, mas eu sabia que não era o meu amor. E isso me doeu na alma.

Tudo começou há 15 anos. Eu nasci. Minha mãe morreu no parto. Fui criado por Lavída Lazaski, uma trans muito cobiçada na vila Xepa. O lugar era conhecido por esse nome porque falavam que era o resto da cidade. O nome do bairro na verdade era Parque do Bosque. Sempre brinquei com as outras crianças de lobo do bosque nos pique-escondes da vida. Fingia que era o lobo, e as devorava quando as achava. Adorava tudo aquilo!

Meu pai quase nunca podia me ver porque trabalhava muito, ganhava pouco, e tinha que ficar no trabalho à disposição da madame para a hora que ela precisasse sair de carro. Ele era o motorista de confiança da casa. O patrão não confiava em mais ninguém, dizia ele. Eu me orgulhava dele. Olhava seus olhos. Eram iguais aos meus. Ele olhava para minha mãe com um misto de desejo e doçura. Sempre trazia de tudo da cidade para não termos a tormenta de atravessarmos a ponte para o lado nobre da cidade. Minha mãe sabia como mandar um mensageiro avisando papai sobre o que faltava ou o que estava para acabar. E ele trazia. Não tínhamos muito dinheiro, mas eu era feliz. É lógico que meus pais, como qualquer outro casal, brigavam, mas nunca na minha frente. Eu ouvia os sussurros atrás da porta, mas quase nada distinguia.

Havia rumores naqueles dias de que o circo havia chegado na cidade, lá pelas bandas de Lagoa Forte. Jaquelina, filha de Lorenzo da padaria, muito metida a besta, contou para todos da rua que havia ido ao circo. Jaquelina era metida a besta, sim, mas não mentirosa. Ela contou sobre os palhaços, trapezistas, dançarinas, mágicos, malabaristas, tudo quanto era tipo de animal. Nossa imaginação voou alto. Fui correndo pedir mamãe.

– Olhe bem para o que eu estou te falando! Você não atravessa aquela ponte por nada nessa vida. Do lado de cá, a gente tem tudo que importa e nos sustenta. Nada do outro lado da ponte nos interessa. Então você vai me jurar que NUNCA, NUNCA vai atravessar a ponte.

Ela me apertava tanto os braços, e seus olhos eram tão desesperados, que, sem palavras, acenei com um sim, e de medo nada perguntei.

Passados alguns dias, mamãe teve que ir para o interior ajudar uma grande amiga em dificuldades na gestação. Minha mãe era parteira. Ela ajudou eu não morrer junto com minha mãe biológica. Por isso, era de fato minha mãe. Ela me deu a vida. Naqueles dias que estaria fora, para que eu não ficasse sozinho, ela me levou para a casa das quengas, onde tinha um quarto só para mim separado das confusões, e sempre tinha alguém que queria cuidar de mim como se eu fosse um bebê. Eu era tão paparicado que para minha mãe depois me tirar a manha era um custo.

Durante o dia, era comida que não acabava mais. As meninas pareciam adivinhar minhas vontades. Eu era o xodó delas. E adorava todo aquele mimo. Quando a noite chegava, elas deixavam eu brincar até um certo horário, antes da casa lotar, e depois eu tinha que ir para meu quarto. De tempos em tempos, alguém ia lá checar se eu estava bem e me levava um agrado. Mas naquele dia, alguém importante da cidade fechou a casa para ele e os amigos em uma despedida de solteiro. Então como ficava mais calmo, eu podia brincar lá fora por mais tempo. Um dos playboys foi buscar alguma coisa no carro e deixou a porta aberta. Eu nunca havia visto um carro tão grande e tão bacana como aquele. Era uma limusine prata imensa. Parecia do tamanho da piscina do bairro. Eu não resisti. Entrei. Pulei da parte de trás para o banco da frente, brinquei de dirigir, voltei para trás, abri a geladeirinha, deitei no chão que tinha um carpete macio e gostoso. Rolei para debaixo do banco e dormi. Quando acordei, os homens conversavam alto e contavam vantagens das coisas que tinham feito na casa. O carro andava. Até que um falou para parar porque tinha que mijar. O carro parou. Os homens que estavam acordados saíram. Era a minha chance de fugir. Consegui sair em silêncio sem ninguém ver. Escondi atrás da primeira moita que vi até eles irem embora. Quando olhei para um lado e para o outro estava perto da ponte para voltar para o bosque. Mas para minha surpresa, estava também de frente ao circo.

Não resisti. Ia só dar uma olhadinha rapidinho para ver se Jaquelina realmente não estava exagerando. Corri até o circo. Passei debaixo da lona. Por debaixo das ferragens da arquibancada, consegui um espaço para chegar em frente ao palco e sentar ao lado de outros expectadores. Era tanta luz e tanto som que eu não me aguentava de alegria. Era palhaço engraçado, malabarista habilidoso, trapezista emocionante que me encantei com tudo aquilo e não queria ir embora. Entre uma atração e outra, o apresentador chamava alguma celebridade da cidade ao centro do picadeiro para receber aplausos de todos. Como eu não conhecia ninguém, não me importava com aquele espetáculo, ficava era ansioso pela próxima atração.

Até que em dado momento, o cicerone avisa que em breve viria o domador de leões. Eu fiquei muito entusiasmado com aquilo. Alguém doma leão? Tinha que ver de qualquer jeito. Nem pensava em ir embora dali.

– Mas antes, senhoras e senhores, vamos aplaudir de pé um de nossos mais honrosos visitantes dessa noite: o vereador Valtinho Oliveira com esposa e filhos.

Meus olhos não podiam crer. Era papai. Por um segundo, tive um impulso de ir até ele para abraçá-lo, mas vi suas mãos ocupadas de um lado uma loira lindíssima, toda arrumada com anéis, brincos e colar dourados e um vestido vermelho muito glamoroso, de outro um menino da minha idade. Tornei meus olhos para o homem do centro da família para reafirmar minha primeira visão. Era meu papai.

Saí correndo e chorando do circo querendo morrer de indignação e tristeza.

Na sequência daqueles dias, não queria conversar com ninguém. Comecei a frequentar o bar do Zé, onde os homens discutiam a política municipal. Ficava no cantinho de forma que eles não percebiam que eu estava por perto. E o nome de Valtinho Oliveira era bastante falado por vários dentro do bar. Não era nenhuma unanimidade de voto, mas era certo que seria o próximo candidato a prefeito. Entre uma conversa e outra, alguém sussurrou:

– Será que a oposição vai descobrir o bastardinho que ele deixou aqui no bairro?

– E será que alguém está interessado em saber do caso dele com Lavída? Isso destrói qualquer candidatura.

Fiquei com aquilo na cabeça. Tinha a esperança de que ele ainda viria para se explicar, me dar um motivo para toda aquela encenação.

Eis que um dia ele apareceu. Iria ficar até o dia seguinte. Chamou-me no meu quarto. Fui feliz achando que teríamos aquela conversa esclarecedora. Ele fechou a porta. Tirou o cinto. Atravessou o braço com o cinto em sua mão direita atrás do ombro esquerdo, fivela exposta, cruzou meu rosto de fora a fora. Rasgou a minha boca.

– As quengas me contaram da sua ousadia de sumir. Eu não sei o que você fez de errado. Mas você sabe porque está apanhando.

Fechou no quarto com mamãe e, lá ficou até o dia seguinte.

No domingo de manhã, era dia de comício.

Peguei o megafone da igreja Batista do bosque. Estou no comício. Chamo por seu nome duas vezes:

– Senhor Valtinho! Senhor Valtinho!

Os olhos não falham. Eles demonstram o medo, a angústia e o desespero de qualquer alma. Mas quando vai mostrar a face de um hipócrita, todo o ser desaparece e só resta o vazio podre de quem só quer o poder.

– Eu não sou ninguém. Ninguém sabe meu nome. Mas vão saber que sou filho de uma prostituta da Xepa que morreu no parto, criado por uma trans com orgulho. Minha única mancha é ser seu filho. Não bastasse ter um bastardo, mas vive em mentiras deslavadas com mulheres e homens por toda cidade. Quem não me acredita, olha meus olhos e vejam os olhos desse porco imundo que é meu pai.

Senti um soco no estômago. Outro na cara. A polícia me levou. Estou preso há 45 dias, fiquei 15 na solitária. Ninguém vem me ver. Não sei que cidade estou. Não conheço ninguém aqui. Não me lembro do meu nome. Mas sei da minha história.

Confidências a Kolody

Querido Deus