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EMPRÉSTIMO NO CARTÃO. DINHEIRO NA HORA!

A agiotagem institucionalizada

Nenhum poste foi poupado no trajeto que faço diariamente entre Parnamirim e Natal. Ida e volta todos os postes, sem exceção, estão cobertos de anúncios oferecendo “dinheiro fácil”, “dinheiro na hora”. Outras estruturas também são utilizadas como suporte para a divulgação dessa modalidade de agiotagem institucionalizada e generalizada: tapumes de construções; passarelas de pedestres; muretas de proteção em viadutos, pontes e canteiros; muros e paredes de prédios abandonados; paradas de ônibus; caçambas de recolhimentos de entulhos ou qualquer outra superfície apta a receber uma broxada de cola caseira feita de goma de tapioca, o medieval “grude” (será que ainda usam isso?).

Em sua maioria são folhetos simples, no formato A4, com o texto curto e direto e que podem ser produzidos em qualquer impressora a laser em preto e branco: EMPRÉSTIMO NO CARTÃO – DINHEIRO NA HORA – Valor do empréstimo – Quantidade e valor das parcelas – Telefone para contato. De uns tempos para cá, surgiram novos modelos de propaganda e com uma produção mais requintada: banners, cartazes em tamanhos maiores e em cores (alguns com imagens), faixas e até os suntuosos outdoors.

O nível absurdo da poluição visual que margeia esse meu itinerário diário, sinaliza que tal fenômeno publicitário se reproduz em todas as ruas, avenidas, becos e vielas dessas duas cidades que se misturam e quiçá em todas as cidades da região, do estado, do país ou do planeta.

Eu fico cá, em meus devaneios aleatórios, imaginando quantos milhões de pessoas vítimas dessa agiotagem desenfreada devem estar atoladas até o pescoço em dívidas com cartões de crédito, devendo a bunda e uma banda, sem quaisquer perspectivas de um dia vir a quitar essas dívidas.

Em tempos de dinheiro e agiotagem digital, a figura clássica do agiota, trajando calça e sapato social, relojão dourado pesando no braço, camisa de volta ao mundo “ensacada” e aberta no peito para exibir o cordão de ouro e sempre acompanhado da indefectível bolsa tipo capanga – abarrotada de cheques pré-datados e promissórias – debaixo do “suvaco”, não existe mais. Entrou em extinção por volta do final do século passado. Essa imagem do agiota, também estava associada aos bicheiros e cafetões. Vai ver, era tudo a mesma coisa.

A agiotagem é crime previsto em lei. A Lei 1521 de 1951 (a preocupação é antiga) dispõe sobre crimes contra a economia popular. Em seu artigo 4º, a norma prevê “o crime de usura pecuniária ou real” e descreve a conduta delituosa como sendo “o ato de cobrar juros e outros tipos de taxas ou descontos superiores aos limites legais ou realizar contrato abusando da situação de necessidade da outra parte para obter lucro excessivo”. A pena prevista é de 6 meses a 2 anos de detenção e multa.

Usura e agiotagem (cobrança de ágios) são sinônimas. Porém…, a cobrança de ágios dentro dos limites legais não é considerada crime. É exatamente o que os bancos fazem quando emprestam dinheiro. Me engana que eu gosto. E eu sou testemunha dessa “cobrança dentro dos limites legais” (contém ironia): durante os anos 1980, trabalhei no banco privado Banorte (hoje Banco Itaú) na agência de Mossoró.

Em 1989 saí para trabalhar em uma empresa de factoring ou fomento mercantil. Era a febre do momento entre os emprestadores de dinheiro mais discretos e que movimentavam grandes quantias a partir do caixa-dois de suas empresas. A atividade de factoring surgiu no Brasil em 1982 e serviu para, de certa forma, oficializar a atividade milenar de se emprestar dinheiro a juros sem a chancela das instituições de crédito legalmente estabelecidas e longe dos regimentos financeiros vigentes.

De acordo com os princípios básicos da ANFAC – Associação Nacional das Sociedades de Fomento Mercantil – Factoring, a atividade não é um empréstimo, mas uma “antecipação dos recebíveis” de uma empresa para ajudá-la a aumentar o capital de giro. Apesar da singela definição, a “antecipação dos recebíveis” tem todas as características da tradicional operação de desconto de duplicatas, tão rotineira nos bancos. Mas não vamos aqui nos aprofundar nas questões técnicas a respeito da atividade de factoring.

Pois bem. No mesmo ano em que entrei para uma factoring, participei de um Encontro de Empresas de Factoring do Nordeste, em Recife. Durante três dias (quinta, sexta e sábado) foram realizadas várias palestras nas quais os conferencistas tentavam exaltar o aspecto fomentador do negócio, sempre destacando que não se tratava de uma atividade financeira e sim de incremento comercial. E tome lenga-lenga.

Foi justamente no desenrolar desse encontro, que conversei pela última vez com um típico agiota. Ao final do primeiro dia de reuniões e palestras, eu e dois amigos de empresa fomos jantar e tomar umas cervejas. Quando estávamos no restaurante do hotel onde se realizava o encontro, aproximou-se de nossa mesa um sujeito com todas as características do agiota clássico. O cara já veio puxando conversa: “E aí?! Vocês são de onde?”. Nem esperou por nossa resposta e já foi falando que era de Juazeiro na Bahia. E prosseguiu: “Quê que vocês tão achando dessa conversa aí?”. E não deixava ninguém falar: “Isso é uma besteira muito grande. Eu só vim porque um amigo me convenceu que ia ser bom pros meus negócios. E eu vou lá fazer contrato pra emprestar dinheiro! E nem quero saber de duplicata. Eu quero é cheque pré-datado!”. E tome conversa: “Amanhã eu nem vou mais. Vou ficar até domingo porque já paguei o hotel”.

Já enturmado e tomando cerveja conosco, continuamos falando sobre assuntos diversos, até que ele veio com esta: “Tem um jeito bom de emprestar dinheiro sem risco de ter prejuízo: cartão de crédito”. E tirou de dentro da capanga tamanho E de enorme, uma maquineta de passar cartão da idade da pedra, a famosa “trec-trec” ou “trac-trac” (por causa do barulho que fazia quando se passava o cartão): “Só ando com ela. Se alguém precisar é só falar. Passo R$ 1.000,00 e dou R$ 700,00 na hora”. “Eita” juros da “mulesta”!

Rimos muito dessa história. E de fato, não vimos mais o baiano nas palestras. Vez por outra nos encontrávamos nos corredores do hotel e após os comes e bebes do encerramento do encontro no sábado à tarde, saímos para conhecer os botecos de Recife.

Como um dos precursores do empréstimo no cartão de crédito, se ainda estiver vivo e operando no ramo do “dinheiro fácil e na hora”, o nosso amigo já deve ter se embarafustado nos subterrâneos sombrios da agiotagem digital e espalhado cartazes por todo o estado da Bahia e adjacências.

Escrito por Marco Túlio

O MAIOR SEGREDO

O Infinito que me habita