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Culpa | Capítulo X

Eu, perdida pelas ruas, sem noção de nada, apenas acompanhada de uma dor de cabeça forte, tornando tudo ainda mais confuso em mim. As palavras do padre, vívidas, quando no confessionário:

— Filha, filha… Não! Não faça isso.

Quando uma rasga-mortalha cruzou o céu escuro, uma voz mansa interrompeu meus pensamentos:

— Vamos para minha casa, senhorita Creuza. Não pode ficar assim pelas ruas.

Um homem ao meu lado, de jeito educado e manso, conteve-me o desespero.

— A vida sem ele… senhor?

— Zequinha. Todos me chamam de Zequinha Coletor. Vamos! Maria, a minha esposa, já preparou um quarto.

— Mas…

Não me deixou completar, conduzindo-me.

Eu não tinha noção de nada, os pensamentos ruins assombrando o meu juízo. Como se a vida nada significasse. Levei os olhos de relance em direção ao rio, que corria no vale escuro, aos fundos da cidade.

Ao perceber aquela intenção, o senhor Zequinha afastou a minha vista das correntezas e foi me levando em silêncio.

& & &

Uma casa se apresentou à minha frente. Até então caminhara cabisbaixa. No portão, duas mulheres nos aguardavam. Uma delas saudou-me com a voz embargada:

— Vamos, entre! A casa é sua. Lídia, conduza a nossa hóspede ao quarto de visita.

Lídia pegou no meu braço direito e entramos. Quis falar algo; apenas me escapou:

— Obrigada. Que Deus os abençoe.

& & &

Na manhã seguinte, a casa acordou cedo e o cheiro do café me animou.

Na cozinha, Lídia, junto ao fogão, preparava o desjejum. Ao me ver, disse:

— Ô, não precisava ter acordado tão cedo, senhorita!

— É costume — argumentei.

Pondo a mesa, Lídia reparou no meu jeito e me confidenciou:

— Da maneira que entrou aqui ontem e como está agora, meu Deus! As nossas orações chegaram ao Céu.

Um pesar invadiu os meus olhos; e me sentei à mesa, aos prantos.

— Tudo vai se resolver, filha de Deus. E outra coisa, você não poderia estar sob melhores cuidados. Não é porque sejam os meus patrões, mas dona Maria e seu Zequinha são pessoas do bem, um casal muito caridoso.

— Não quero atrapalhar a vida de ninguém, dona Lídia. Eu…

Uma pessoa chegou junto a mim, saudando-me:

— Bom dia, Creuza. Espero que tenha repousado bastante.

Era dona Maria Djanira. Levantei-me, constrangida, enxugando as lágrimas na manga do vestido de chita.

— Na medida do possível, sim. Sou grata a vocês pela acolhida.

— Não há de quê. Estamos neste mundo para servir. Somos todos servos e servas de Deus, sob a proteção de nossa mãe, Maria Santíssima.

— Amém! — respondeu Lídia, dispondo à mesa café com leite e tapioca, com queijo de coalho.

& & &

Depois do café que, confesso, servi-me com fastio, fui chamada ao escritório. Lá seu Zequinha me aguardava. Pediu-me que me sentasse, dizendo-me:

— Já liguei para o meu advogado. Ele defenderá o seu…

Ele silenciou, no intuito de me resguardar de algum fato que poderia me constranger.

— Não conheço o seu nome verdadeiro, mas fui informada, quando entrei na prisão, de que era perigoso. “Assassino que carrega no lombo dois crimes: pai e filho”, estas foram as palavras do delegado.

Zequinha rabiscou algo num papelote sobre a escrivaninha e, de repente, ordenou, indiferente ao meu depoimento:

— Lídia, chame o Marquinhos aqui.

E, antes que fôssemos interrompidos, ele olhou dentro dos meus olhos, declarando-me:

— Quem de nós não cometeu os seus erros? Trata-se de um homem bom, isso eu posso lhe assegurar. Creuza, só existe um sentimento maior do que o amor: o perdão. Pense nisso.

Um jovem se apresentou à entrada do ambiente. Seu Zequinha lhe repassou um bilhete, ordenando:

— Entregue na mercearia do Gazumba. Ficarão por minha conta as refeições do preso… Sim, o que deu entrada ontem, Marquinhos.

& & &

Licânia toda comentava a recente prisão. Na pedra do Mercado Público, a conversaria corria solta:

— Achava que, do jeito que a nossa polícia é fraca, ele não seria encontrado!

— Quem deve sempre paga!

— Pessoal, não julguem. Quem repara um cisco no olho do outro nunca vê uma trave na própria vista. Vamos deixar o caso com a justiça.

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No final da manhã, reuni coragem e pedi ao seu Zequinha que me escrevesse uma carta. Das Dores precisava receber notícias.

— Será uma honra.

Pegou da caneta e do papel pautado:

— Me diga sobre o que quer avisá-la.

Cocei o alto da cabeça, passei as mãos pelos lábios secos, presa à dificuldade de expressar o que queria transmitir.

— Vejamos. Que tal assim? Estou bem acomodada, encontrei um casal amigo. Não se preocupe, pois ficarei enviando notícias de vez em quando…

— Não, espere. Estou arrumando aqui dentro as ideias.

Com pouco, declarei:

— Escreva: Minha querida Das Dores. Que você esteja na paz do Senhor. A decisão de seguir até Licânia foi acertada, apesar de estar sofrendo muito. O homem que amo é… — E um choro embaralhou a minha fala.

Zequinha não parou a escrita, continuou sereno a carta, como se traduzisse em palavras o que me afligia.

& & &

No final da tarde, voltamos à prisão. Lá chegando, seu Zequinha saudou o delegado.

— O advogado Mateus Praxedes Arcanjo ficará responsável pela defesa do detento. Gostaria de acertar outros detalhes. Vejamos. As refeições dele, a fim de não onerar as despesas públicas, ficarão também ao meu encargo. Gazumba será o fornecedor. As visitas de dona Creuza serão sempre acompanhadas por uma pessoa de inteira confiança. Aliás, a senhorita Creuza está residindo conosco. Qualquer necessidade, seu delegado, pode me acionar.

De repente, um dos guardas soprou:

— Com tão forte padrinho, pelo jeito o cabra vai ser inocentado.

Seu Zequinha virou-se em direção ao samango e respondeu-lhe com um acertado silêncio.

Ao se despedir, ele agradeceu ao delegado e retornamos.

A noite já chegava em Licânia; no céu, o prenúncio de uma lua dadivosa. Nas algarobas e nos benjamins, o passaredo se achegava festivo.

Escrito por Clauder Arcanjo

A LEI ROUANET E O VAR

Derrota