Para o filósofo alemão Immanuel Kant, a prerrogativa do legislador universal é de nos tornar pessoa, um ser com fim em si mesmo, e não uma função do Estado, da sociedade ou da nação – dispondo de uma dignidade ontológica.
Já para o senador da República, Styvenson Valentim (PODEMOS-RN), que – como bem definiu a jornalista e psicanalista Sheila Azevedo – ganhou notoriedade e ascensão política por sua sanha justiceira contra os cachaceiros motoristas de plantão, os direitos do homem podem ser usados pelo Estado, mas não de todo e qualquer homem, como demonstra seu projeto de lei que defende a doação de órgãos duplos como hipótese de remição da pena privativa de liberdade (PL 2.822/2022).
Styvenson defende que o projeto pode parecer “bruto e desumano”, mas a proposta dá oportunidade para que essas pessoas demostrem solidariedade e de alguma forma devolvam para a sociedade algo que foi retirado dela. Assim, “coisificando” corpos e impelindo que apenados (pois já cumprem uma pena de acordo com o devido processo penal) sejam mais uma vez penalizados e tornando a população mais pobre do país muito vulnerável.
Para o jornalista e professor de Direito e Processo Penal da Universidade Católica do RN, Cid Augusto, “o projeto é absurdo, mas, infelizmente, não representa novidade. Já se defendeu algo semelhante nas Filipinas e talvez em outros lugares. Lá, propunha-se a transformação da pena de morte em prisão perpétua, em troca de um rim do condenado. Aqui, o mesmo órgão vale 50% da pena. A iniciativa, como se percebe, institucionaliza o comércio de órgãos humanos. Por ele, o detento que cumpriu pelo menos 20% do tempo imposto pela Justiça criminal pode comprar a liberdade ao Estado, pagando com a mutilação do próprio corpo”.
Cid ainda destaca que, se aprovada, a proposta vai reduzir a população carcerária, formada em sua maioria por pessoas pretas, pobres e com baixo ou nenhum nível de alfabetização, a condição de subgrupo humano, de indivíduos inferiores e descartáveis.
“Sem querer enveredar na chatice do ‘juridiquês’, afirmo apenas que fere gravemente a Constituição Federal ao desrespeitar princípios inegociáveis, como igualdade, dignidade humana e vedação a penas cruéis”, alerta Cid Augusto.
A proposta de trocar órgãos de presos por tempo de prisão não é novidade aqui no Brasil e já tramita há pelo menos 20 anos no Congresso Nacional. Em junho de 2003, o então deputado Valdemar Costa Neto (PL/SP) apresentou o um projeto de lei propondo permitir “a presidiário que se inscreva como doador vivo de órgãos, partes do corpo humano ou tecidos para fins terapêuticos, requerer redução de pena após a aprovação do procedimento cirúrgico”.
De lá para cá, outros onze projetos de lei foram apensados à proposta de Costa Neto e continuam desafiando os limites da ética e da legislação brasileira, que explicita que “comprar ou vender tecidos, órgãos ou partes do corpo humano” é crime, com pena de reclusão (que vai de três a oito anos) e multa. Isso, também sem levar em conta a Constituição Federal, que em seu artigo 1°, inciso III, faz da dignidade da pessoa humana valor supremo da ordem jurídica.
Se cada ser humano tem que ser respeitado na sua integralidade e ter sua dignidade protegida, como transformar em lei uma proposta de barganha de seu próprio corpo? Se é proibido vender seu órgão, pode ser permitindo trocá-lo por alguma vantagem? Uma pessoa cumprindo pena estaria em condições para doar seus órgãos por livre e espontânea vontade? Teria também os esclarecimentos necessários para tanto? Um preso tem autonomia? Ou devem ser induzidos a se transformar em um recurso ‘natural’ pronto para colheita?
As perguntas são muitas. Mas, o limite além de constitucional, legal, é ético.
Segundo o filósofo italiano Nicolau Maquiavel. “há três espécies de cérebros: uns entendem por si próprios; os outros discernem o que os primeiros entendem; e os terceiros não entendem nem por si próprios nem pelos outros; os primeiros são excelentíssimos; os segundos excelentes; e os terceiros totalmente inúteis”.
Partindo disso, e diante de iníquas propostas de nossos legisladores, é de se lamentar que a despeito de tantos avanços da Ciência, ainda não seja possível o transplante de cérebros. Poderia ser indicado para muita gente que se acha acima do bem e do mal.