Fui apresentado a Eduardo Galeano pelo Dr. José Maria Caldas, o companheiro Zé – como o trato até hoje –, por volta de 1982 ou 1983. Eu tinha 22 anos e era um “sunguelo”, “zuadento” e metido a revolucionário de esquerda. Mudei quase nada de lá pra cá, é bom que se diga. Continuo “zuadento”, esquerdista, mas longe de ser um “sunguelo”. Com o PT recém fundado, sempre que nos encontrávamos em alguma cervejada, o assunto era política: Lula, socialismo, capitalismo, comunismo, justiça social, o futuro da esquerda no Brasil e a esperança e o sonho de dias melhores para o país sob um governo petista. Falávamos também de música e literatura — o clássico “papo cabeça” da geração dos anos 80. Naquela época, estava fascinado com a leitura de A Ilha de Fernando Morais (1ª edição de 1976), e não me cansava de citá-lo nas conversas e discussões políticas.
Sempre li muito, desde muito cedo, e de tudo: histórias em quadrinhos, bolsilivros de faroeste (o autor mais famoso era o espanhol Marcial Lafuente Estefanía), de guerra (coleção Hora H), de espionagem (ZZ7 – Brigitte Montfort em ação, com suas capas provocantes), e policiais (coleção FBI). Na adolescência, li também quase todos os 48 volumes da coleção “Clássicos de Bolso” da Ediouro, publicados nos anos 1970. A coleção funcionava por assinatura e era composta por grandes clássicos da literatura mundial, em sua maioria adaptados ou traduzidos pelo jornalista e escritor Carlos Heitor Cony.
Dito isso, voltemos aos anos 1980. Eis que certo dia – um sábado, com certeza – o companheiro Zé apareceu com dois livros: As Veias Abertas da América Latina, de Eduardo Galeano, e uma coletânea de histórias de Sherlock Holmes, de Arthur Conan Doyle. Era um empréstimo.
Quando cheguei em casa, coloquei os livros em umas das estantes que compunham a maravilhosa biblioteca de meu pai, Chicoliveira. Meu pai não era um leitor comum; ele “devorava” livros. E na segunda feira, ao sair para trabalhar, já o encontrei confortavelmente refestelado em sua espreguiçadeira, lendo As Veias Abertas.
Diante desse fato, decidi ler as aventuras de Sherlock Holmes. Depois de alguns dias, houve uma troca silenciosa dos livros. E qual não foi minha surpresa ao me deparar com o livro do companheiro Zé, repleto de anotações.
Chicoliveira tinha a mania de destacar, nos livros que lia, as passagens de que mais gostava. Escrevia os números das páginas nas folhas em branco, sublinhava trechos, fazia marcações e comentários nos rodapés — uma espécie de fichamento acadêmico. Certamente, ele imaginou que os livros eram meus, e essas anotações acabaram facilitando minha leitura e o encantamento por Eduardo Galeano.
As Veias Abertas da América Latina, transcende o tempo histórico e, desde sua publicação em 1971, tornou-se um símbolo de resistência e uma referência intelectual e política para aqueles que lutam contra as injustiças sociais, a exploração econômica e o imperialismo. Até hoje, o livro de Galeano é peça central na formação e continuidade do pensamento de esquerda na América Latina, oferecendo tanto uma base histórica quanto uma inspiração constante para a luta por justiça social e soberania na região. Eu diria que é o nosso “manual do bom esquerdista”.
Com os livros devidamente “consumidos”, chegou a hora da devolução. Mas como devolver um livro “todo riscado”? Devolvi, intacto, o de Arthur Conan Doyle e disse ao companheiro Zé, que ainda não havia terminado o de Galeano. Procurei-o nas escassas livrarias de Mossoró, mas não encontrei. O tempo foi passando, casei-me, saí da casa dos meus pais e não levei o livro comigo. Com o tempo, houve um afastamento natural entre nós, embora a amizade permaneça até hoje. Dr. Zé Maria foi o pediatra dos meus dois primeiros filhos, Isadora e Túlio Filho, e nas poucas vezes em que nos encontramos, nunca falamos sobre o livro não devolvido – ou perdido – de Galeano.
Com as várias mudanças de Chicoliveira, no vai e vem da biblioteca, e depois com sua morte, quando houve a divisão dos livros e discos entre os filhos, nunca mais vi o famoso exemplar de As Veias Abertas da América Latina.
Durante a pandemia, voltei a ler muito e a comprar livros (as livrarias virtuais ajudam e acabam “viciando”) e a obra-prima de Eduardo Galeano fez parte do primeiro lote.
Recentemente, concluí a leitura da trilogia Memória do Fogo, uma obra monumental em que o gênio uruguaio explora a história da América Latina de maneira única e poética. Os Nascimentos (1982) abrange os séculos XV, XVI e XVII; As Caras e as Máscaras (1984) cobre os séculos XVIII e XIX; e O Século do Vento (1986) retrata o século XX.
Nessa trilogia, Galeano adota um estilo literário que mistura narrativa histórica com elementos de ficção, mitologia e crônica, criando um texto ao mesmo tempo lírico e documental. Cada volume é composto por uma série de vinhetas curtas, que retratam personagens históricos, lendas indígenas e momentos cruciais da história latino-americana. Recomendo.
Aqui está um trecho de As Caras e as Máscaras:
SACRAMENTOS – Guatemala 1775 (Los Mayas del Siglo XVIII – Autor: Francisco de Solano – 1974)
Os índios não cumprem os rituais da Páscoa se estes não coincidem com dias de chuva, de colheita ou de plantio. O arcebispo da Guatemala, Pedro Cortés Larraz, dita um novo decreto ameaçando quem se esquece, assim, da salvação da alma. Tampouco os índios vão à missa. Não respondem ao chamado nem ao sino; é preciso ir buscá-los a cavalo por aldeias e plantações e arrastá-los à força. A falta é castigada com oito chibatadas, mas a missa ofende os deuses maias e isso pode mais que o medo de apanhar. Cinquenta vezes por ano, a missa interrompe o trabalho agrário, cotidiana cerimônia de comunhão com a terra. Acompanhar passo a passo os ciclos de morte e ressureição do milho é, para os índios, uma forma de rezar; e a terra, templo imenso, lhes dá provas, dia a dia, do milagre da vida que renasce. Para eles, toda terra é igreja e todo bosque, santuário. Para fugir do castigo do pelourinho da praça, alguns índios se aproximam do confessionário, onde aprendem a pecar, e se ajoelham diante do altar, onde comungam comendo o deus de milho. Mas só levam seus filhos à pia batismal depois de tê-los levado, monte adentro, para oferecê-los aos antigos deuses. Ante eles, celebram as alegrias da ressureição. Tudo que nasce, nasce de novo.
PS. Querido companheiro Zé, caso você leia esse texto e sua biblioteca continue desfalcada – mesmo passados 40 anos – da grande obra do gênio Galeano, envie-me uma mensagem que eu lhe faço chegar uma edição “zerada” de As Veias Abertas da América Latina.