Por Maria Maria Gomes — Escritora
Fotos: Alex Gurgel
Somente em casa, depois de retirar a sacola das costas, com um pouco de ervas e temperos, ela se deu conta daquele momento tão especial para si mesma. Foi um encontro casual e uma fala despretensiosa, sem rodeios, espontânea até o final de sua última vogal pronunciada nos confins da garganta antiga. É certo que a voz, já provecta, saía ligeira, assim como ela mesma fazia quando as pernas corriam para o carro da feira, não queria perder o direito de ir na boleia da caminhonete de Bilô de Zefa. Era assim que todos conheciam o motorista magro e sisudo do automóvel.
Àquela altura dos fatos, as pernas dela conheciam as léguas, que mesmo sobre um transporte de quatro rodas poderiam medir as distâncias do espaço ao seu redor. Antes, havia andado mesmo em dois, percorrendo o mundão de tantas aventuras. Um mundão que não precisava de infinitas extensões, nem mesmo longos e indecifráveis territórios. Vivia na sua imaginação fértil de menina ribeirinha.
Arrastou a cadeira de balanço com alguns fios lilases quebrados e sentou-se nela com aquela imagem nas mãos. O presente, para ela, foi uma grande felicidade vinda por mãos humanas na hora em que vendia suas ervas santas. Ansiosa e atenta, acariciou a imagem como se fosse um objeto em três dimensões. Cada traço que seus dedos percorriam, era uma memória saída do baú inconsciente onde o tempo (i) memorial se fixava feito rocha de xelita nos túneis das terras do Seridó ou uma rocha aceirada pelo rio de sua aldeia. Os dedos desfilavam pela tez do papel vendo-se também na figura.
Olhou-a como se refletisse acerca do tempo e dizia a si mesma em total estado de contemplação: “eu sou outra pessoa, aqui na testa não tinha esse sinal tão roliço, minha boca não se dobrava para o queixo como agora, esses olhos baixos já foram alegres e arredondados. Jesus, o tempo passou depressa demais! ” As memórias preencheram o espaço de sua casa e ela começou a caminhar pelos cômodos, lembrando os momentos felizes que vivera antes de chegar a essa idade.
A dona do retrato gravava, com sua memória fotográfica, cada centímetro construído por ali onde nascera e plantara suas ervas que, após colhidas, eram amarradas em feixes para serem vendidas na feira cativa de mangais, atividade econômica recorrente no bairro do Alecrim. Sentia-se uma formiga em trabalho braçal. Todos os dias a mesma peleja: acender o fogão à lenha, fazer o seu café de munheca e tomá-lo. Era uma rotina sem criatividade.
Quando Bilô de Zefa apitava, ela já estava pronta. Sacudia a saia do vestido e batia a poeira ficada no saiote em sua imaginação – não havia resquício de nada, mas ela fazia o mesmo gesto de maneira automática – e subia no carro. Conhecia a estrada como ninguém, sabia de cor o número de cruzes por onde passava e a quem elas pertenciam. Toim de Damiana – pensava ela – morreu de doença de menino; João de Nilo, atropelado… Marianinha, de coqueluche, enterrada perto de Toim, seu primo, e muitos que pontuavam a estradona até à cidade onde ela parava para realizar seu trabalho de feirante.
No dia em que uma caravana de fotógrafos passou por lá, como se fosse o cartógrafo árabe Al Edrise e seus acompanhantes nas dunas do Oriente Médio, foi fotografada do jeito que ela era de verdade: sem roupas arrumadas, com seus cabelos grisalhos, os olhos se afinando em rugas e veredas faciais, mãos grossudas e fortes. Ela soltava as sementes que desciam em enxurrada por entre seus dedos. Em um clique, a imagem saiu ligeira.
O retratista nem viu direito o retrato, estava um sol de lascar naquela manhã de sábado, na feira do Alecrim, com muita gente feirando seus produtos.
Bilô de Zefa ficava pela feira até chegar a hora de pegar os feirantes para voltar ao interior, às margens do rio Potengi. E, enquanto a feira não chegava ao final, algumas vezes no pingo da mei dia, ele ficava por ali soltando pilhéria para as moças que passavam. Um dia recebeu os cinco dedos na fuça para deixar de ser atrevido, mas essa foi outra história.
Nesse dia, Bilô de Zefa demorou um pouco mais na feira, porque dona Bia estava encantada diante de um cidadão que lhe chegou de surpresa, entregando-lhe um envelope com um retrato dela impresso. Ela abriu-o aos poucos e, quando olhou, foi logo dizendo: “ Essa sou eu! Meu Deus, fazia vinte anos que eu tinha tirado um retrato”! Tão surpresa quanto o retratista, dona Bia olhou para ele e perguntou se era dela o retrato que ela olhava. De pronto ele falou que sim, e mais, que ele faria naquele instante uma foto dela segurando o retrato. Dois em um, ele falou sorrindo.
Sem dúvida aquele foi um instante mágico para dona Bia e o retratista, pois as memórias dela refletiam não apenas a lembrança de um passado que fora feliz, vivido às margens do Rio Potengi, mas as memórias futuras e simbólicas do retratista. “Muito agradecida”, disse ela. “Não há de quê, dona Bia”.
O retratista seguiu sua aventura lembrando do bem que fez naquele dia e pensando em quantas outras histórias registradas em retratos ele desconhecia. Enquanto ela, a modelo da Feira do Alecrim, sentada na cadeira de balanço, se deliciava consigo mesma, assim, como a imagem de seu rosto refletida nas águas do rio que fertilizavam a sua redondeza.
Comentários
Carregando...