Ao entrar, tirou a camisa suada, largando-a sobre a pilha de roupa suja. Depois de sentar-se no tamborete, na varanda aos fundos, tirou os sapatos, dando um tempo para esfriar os pés, e ficou com os olhos perdidos no céu cego de estrelas. Minutos depois ganhou a direção do banho. Calado e casmurro, sem razão clara, apenas como se com desgosto da vida, numa espécie de mal-estar.
— E o trabalho, Ferreira? — indagou-lhe Gervásia.
Nenhum argumento lhe ocorreu, ele calou-se, fechando a porta do banheiro atrás de si. Levou mais tempo do que de costume. A água a correr pela pele, os olhos acompanhando a espuma do sabonete em seu trajeto em direção ao ralo. Enxugou-se com vagar; arreganhou os dentes frente ao espelho embaçado, se sentindo velho e cansado. Penteou o cabelo ralo, aspergiu a lavanda nos sovacos e saiu.
— O jantar já está na mesa, querido. Vai querer que eu esquente o leite?
— Não… não precisa.
Gervásia respeitou-lhe a resposta.
— Se precisar de algo, me chame. Vou para o quarto, estou com um pouco de dor de cabeça.
— Boa noite — expressando um tom de despedida, não de saudação.
Mais mexia no prato de comida do que se servia. A boca sem a volúpia do apetite, a cabeça a vagar em pensamentos mil, enquanto a mão afastava o pedaço de carne do fio do macarrão. Os cotovelos enfiados na toalha colorida sobre a mesa da copa. Resolveu depositar o resto dos alimentos na lixeira do muro; jogou água sobre a louça da pia e se arrastou em direção ao quarto. Quando entrou, percebeu que Gervásia dormia. Vestiu-se com o pijama que ela deixara pendurado no cabide; escovou os dentes e, antes de deitar-se, foi para a sala. Ao abrir a janela, o cheiro da noite… e um entalo assomou-lhe à garganta.
— Meu deus, meu deus… — Ferreira a sussurrar, em murmúrio de queixa.
Um vento frio a anunciar um possível alento, depois de um dia quente; agosto de muito trabalho e sol marcante.
Mexeu nas coisas que trazia na bolsa: uns pedidos dos clientes, promessas de venda, cartões de apresentação… muita promessa e poucos negócios certos.
De repente, a presença de um abajur com motivos japoneses no canto da saleta chamou a sua atenção. Dirigiu-se a ele, observando os detalhes nipônicos: cena de um casal com vestes típicas do Oriente. Na mão da dama, um leque.
Aquilo o levou às lágrimas.
— Meu deus, meu deus…
— Venha dormir, Ferreira. Amanhã você precisa acordar cedo — a voz de Gervásia fez com que sentisse vergonha dos seus modos. Enxugou as lágrimas, tentando esconder tamanho desalento.
— Já vou, estou apenas arrumando a pasta para amanhã.
Pouco depois entregava-se aos lençóis, mas o sono não vinha. Um galo desorientado saudava a alvorada em plena meia-noite. A dama com o leque, de quando em vez, a surgir diante dos seus olhos insones.
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Na manhã seguinte Gervásia não preparara o café.
Procurou por ela e a encontrou na sala, sentada na poltrona diante do abajur.
— O café já está na mesa, querida? Vou querer um pouco de leite e…
Gervásia envolta em silêncio, a correr os dedos sobre o tecido do abajur.
Ferreira sentou-se ao lado, e levou a mão direita sobre o seu ombro. Um leve tremor em Gervásia inquietou-o.
— Querida…
Aquilo, como se uma gota d’água, fez com que ela desabasse em choro.
Ferreira levantou-se e abriu a janela. A manhã se marcava de rubro, e as abelhas festejavam os botões das rosas no jardim.
Quando ele voltou os olhos para a porta, viu a sua mala.
— Bom dia, Ferreira. Já está tudo pronto.
— Meu deus, meu deus… Querida…
Ela não o deixou concluir:
— “Domênica, Domênica…” Chega! Esta foi a minha última noite em claro. Seja, então, feliz. Comigo, não.
E Ferreirinha abriu a porta da frente. Na rua, o sol de Licânia costumeiro. Na sala de Gervásia, um abajur arremessado contra a parede. “Maldito! Maldito!…”
*Escritor e editor, autor dos livros O Fantasma de Licânia, Mulheres Fantásticas, entre outros.
clauderarcanjo@gmail.com
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