Por Eduardo Ezus
O orgânico intercala o concreto, despedaçado. Talvez o pulso dos crucificados estenda o sangue sobre o geométrico da cruz, mas em Cravo deslizam sombras de criaturas mortas sobre a dureza rebocada. Domingo cinzento… No abandono da casa, um ser poético apaga a luz para fugir de maquiagens e memórias. Os cômodos, não. Os cômodos ficam. Resguardados na prisão domiciliar, que incorpora as mais diversas sensações. Os cômodos ficam. Deixando perfumes de naturezas passadas, por entre as vigas, olhares perdidos entre o tempo e o porta-retratos.
Os poemas de Cravo guardam a angústia do não convencimento. A vida e a memória são passíveis de destruição em meio a quartos, camas, travesseiros. Intercalando imagens e poemas curtos com construções líricas mais extensas, Letícia Torres finca algumas dores através dos olhos do leitor, alcançando, com imagens fortes (“todo filho, uma vingança”, “o que desosso marca a página”, “não me adotei”), uma solidão da qual esquecemos, mas que, uma vez em contato, a reconhecemos de imediato, como a um velho hóspede que há muito não aparece e, subitamente surgindo, traz à tona algo adormecido.
Como uma “mulher deixada na estremecida porta dos minutos em vão”, essa solidão ganha a forma que habita a casa e seus objetos, uma “cartilagem fazendo barulho / por um lugar no osso”. As imagens evocadas por Letícia são de um corpo feminino coberto de subjetividade, por onde podemos ter contato com os sofrimentos infringidos à mulher, sem a linguagem direta dos textos politicamente engajados, mas profundamente individual.
Não se pode dizer que não há política no livro, pois, uma vez que nos deparamos com versos como “fico fora do lugar para não esquecer onde estou”, podemos associar e estender os significados dessa construção para refletir sobre o lugar da mulher na sociedade (uma vez que é uma poeta quem escreve), e, portanto, uma questão social e política. Mas Letícia guarda, além da consciência do lugar imposto no mundo, algo de transcendental, que a faz chegar a afirmar: “não acreditar na vida é a maior entrega que posso experimentar”. Isso nos lembra o ensaio de Agamben, intitulado “O autor como gesto”, em que diz: “O autor marca o ponto em que a vida foi jogada na obra. Jogada, não expressa; jogada, não realizada. Por isso, o autor nada pode fazer além de continuar, na obra, não realizado e não dito.”
Continuar na obra, se perder nela. É muito possível que não encontremos a Letícia-autora em Cravo, mas a nós mesmos, vidas jogadas numa casa com “sonhos presos aos pedaços” de um “nome”, “circulando o equívoco”. Ao contrário do poeta que não pôde escrever a obra-prima que esperavam de seu talento, pois que o tinteiro havia caído, sujando suas mãos, Letícia, de dentro do seu Cravo, continuará “escrevendo mesmo quando a tintar secar”, chamando poesia “aquilo que vem dando errado”, pensando na “vida presa entre as paredes da casa”, “perdas declaradas/ em futuros duplicados”
Em Cravo, “estados de espera”, “figurino do espetáculo que não houve”, “os segundos que reúnem os anos onde esquecidas estamos”.
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