Sobre

A carta

— Leia em voz alta, Domênica!

— Psiu… ele pode acordar, Gervásia — alertou, apontando para o leito no qual Ferreirinha permanecia há dias.

— Tudo bem, Domênica, me desculpe. Mas, pelo amor de Deus, leia esta carta de forma que eu possa ouvi-la — rogou a ansiosa Gervásia.

— Combinado, vou então voltar para o começo: “Querido Ferreirinha, resolvi escrever porque me esqueci de lhe dizer algumas coisas. Nossa despedida foi tão apressada, estávamos todos ainda em choque com os acontecimentos. Eu, em especial, ferida na alma, sem falar nas marcas no corpo. Pois bem, não havia condição de me expressar de forma mais equilibrada. Eu que sempre, lembra?, lhe pedia ponderação em suas decisões. Em especial quando se tratava de com quem você voltaria a viver pelo resto dos seus dias…”

As duas se entreolharam, interrogando-se, bem como indagando, uma a outra, onde aquela missiva iria dar.

— Continue, continue.

— Claro, vou continuar: “Em especial quando se tratava de com quem você voltaria a viver…”

— Essa parte você já leu, que-ri-da! — irritou-se Gervásia.

— Estou apenas voltando para o início da frase em que parei. Pode ser? — defendeu-se Domênica.

Gervásia, incomodada, como a prever o que viria, moveu a cabeça em círculo, na tentativa de aliviar a tensão que já se alojara nos músculos do pescoço. A seguir, declarou:

— Siga, vá.

De repente, Ferreira das Mercês emitiu, num tom muito baixo, algo ininteligível.

— O que ele disse? Não seria melhor chamar a enfermeira, Domênica?

Domênica não deu a mínima atenção ao que ocorria, prosseguindo a leitura, as mãos um pouco trêmulas.

— “… com quem você voltaria a viver pelo resto dos seus dias. Sei que você se importa comigo, mas, há de convir, após tudo o que dividimos, depois de tudo o que ocorreu a nós quatro…” — Domênica parou, a voz embargada.

Nesse instante Gervásia disparou:

— Que diacho essa cartomante de araque quer dizer com: “… após tudo o que dividimos, depois de tudo o que ocorreu a nós quatro…”?

Domênica, concentrada, não deu atenção ao que Gervásia dissera. No entanto, quando ia prosseguir, ouviu claramente Ferreirinha a proferir:

— Marlúcia?… Marlúcia?…

— Não seria melhor chamar a enfermeira, Domênica?

— Para que, Gervásia, para matar esse condenado? Nós duas aqui, dia e noite nos revezando nos cuidados junto ao leito dele, e por quem primeiro ele chama? Mar-lú-cia. Tenha a santa paciência! — protestou Domênica, a fala embargada com um inesperado pranto.

— Tenha calma, amiga. Ele está variando. Deve ser efeito do trauma. Lembra o que o doutor nos confidenciou: “Não esperem restabelecimento rápido. O caso é de recuperação lenta, vamos precisar de tempo”. Não foi isso?

Domênica enxugou as lágrimas; pegou novamente a carta, tossiu como a limpar a garganta, prosseguindo:

— “… depois de tudo o que ocorreu a nós quatro, não poderia viver sem sua definição. Uma noite, após uma longa sessão, você declarou que amava mais a…”

Um silêncio profundo naquele quarto de hospital. Apenas, de quando em vez, na dependência ao lado, num misto de reza, rogo e choro: “Não, Pai do Céu, não permita que ele se vá!”

Domênica tentou continuar:

— “… que amava mais a…” — Nenhuma outra palavra escapou da boca de Domênica Melgaço. Os lábios rijos, os olhos marejados, voltados, em fúria, para a cama em que José Ferreira das Mercês despertava.

— Domênica?… Gervásia?… E onde está Marlúcia? A minha querida Marlúcia de Oxum.

As duas, num ímpeto assassino, partiram para cima do paciente:

— Seu desgraçado! Seu desgraçado!

Ferreirinha das Mercês foi salvo pela enfermeira de plantão, que, naquele exato momento, entrava para lhe aplicar a última injeção da noite.

*Escritor e editor, autor dos livros O Fantasma de Licânia, Mulheres Fantásticas, entre outros.

clauderarcanjo@gmail.com

Escrito por Clauder Arcanjo

Comentários

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  1. Salvo, no último instante, pela agulha da madrugada. Caso contrário, o nocaute seria fulminante. Marlúcia… E por que não Gervásia ou Domênica? kkkkkkkkkkkkkkkkkkk

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