— Estou bem melhor — respondeu Ferreirinha ao médico de plantão.
Doutor Artur Arcanjo verificou pressão, temperatura e batimentos cardíacos e, após registrar tudo no prontuário médico, indagou-o:
— Então, senhor José Ferreira das Mercês, animado? Já posso lhe dar alta hoje. Quem virá para acompanhá-lo?
Mal completou suas palavras, percebeu que alguém entrara. Ao virar-se, o médico deu pela presença de duas crianças.
Ferreirinha elevou a cabeça do travesseiro e, ao vê-las, quis se sentar no leito. Foi ajudado pelo doutor.
— Telzinho, Belinha, meus filhos! Vocês aqui?… — não conseguiu mais nada dizer, a voz embargada, os olhos emocionados.
Foi surpreendido pelo abraço dos dois, apertando-o na altura da cintura, por entre as pernas.
— Vou deixá-los a sós. Qualquer coisa, senhor Ferreira, pode chamar a enfermaria. Tenham um bom dia.
&&&
— Papai, vamos para casa — A voz da pequena era mais uma ordem do que um pedido.
Ferreirinha das Mercês olhou Telzinho, sentiu nele já os traços da maturidade, como se ela se antecipasse aos anos. O filho deu-lhe a mão direita e, apoiando-o, fez com que ele se levantasse.
— Vista a roupa, pai. A gente vai com o senhor.
Ferreira retirou as vestes de paciente e voltou ao surrado traje que usara quando fora internado, há dias.
&&&
Chegaram em casa, José Ferreira das Mercês entre a filha e o filho. Rumaram direto para o quarto grande. Lá deram com a cama preparada, chinelos ao pé do leito, pijama junto à cadeira, e a Bíblia Sagrada na cabeceira.
— Mas, filhos, sua mãe…
Foi interrompido por Belinha:
— Troque de roupa, paizinho, e descanse.
Os filhos se retiraram, encostando a porta do quarto.
Ferreirinha correu a vista pelo ambiente, lá vivera muitos anos de sua vida matrimonial, até que se dera a sua…
Emocionou-se, sentiu a visão turva e sentou-se na cadeira próxima da janela que dava para o pequeno jardim.
Um trinado na copa da árvore atraiu-lhe a atenção: um canário, em cântico belo, a encantar a companheira, esta no galho ao lado. Com pouco, os dois se encontraram ternamente.
&&&
— Venha almoçar, a mesa está posta…
Era a ex-esposa, Domênica Melgaço. Ele sentiu o seu perfume, sempre discreto. Na voz, um quê de súplica.
Ao chegar à sala de jantar: a cabeceira vazia, com o seu prato e os talheres. Tudo como antes.
As crianças já sentadas, banhadas e esperando pelos pais. Domênica serviu a todos, antes de se servir. Uma galinha caipira, prato preferido de Ferreirinha.
Ele comeu regiamente; a cabeça sempre baixa, o silêncio sobre a mesa, como companheiro fiel e incômodo daquele possível recomeço.
Ao terminar, Ferreira abençoou os filhos e, antes de se recolher, dirigiu-se a Domênica:
— Conversaremos depois da minha sesta. Neste momento ainda me sinto fraco.
Domênica Melgaço ajeitou os cabelos, passou a mão na cintura e… preferiu permanecer calada.
Ferreira das Mercês hauriu o perfume de Domênica, agora nem tão discreto. No silêncio, captou-lhe um acento de acordo.
&&&
Ferreirinha dormiu, profundamente. Sonhou que entrava em um campo onde imperava uma paz angelical. Cercado de tranquilidade e de cordura, descansava e via-se abraçado por uma dama apaixonada. Ela acariciava-o, a tomá-lo nos braços, afastando todos os seus fantasmas do passado. A expulsão de casa: “Você, como provedor do lar, tem se revelado um fracassado. Um fracassado!”; o enamoramento com Gervásia, o recurso à cartomante, a busca por caminhos desconhecidos, a desorientação, os dias no hospital, os cuidados de Magda… Tudo em flashes rápidos, mas vivos e intensos.
Ao despertar, percebeu um trinado quase junto de si. Os canários se bicavam, carinhosamente, à janela.
Quando Ferreira virou-se, a presença de Domênica Melgaço: calada, atenta. Em seguida, reunindo coragem, ela indagou, amável:
— Sonhou comigo, querido?
Ela aproximou-se ainda mais, o rosto em lágrimas.
Ferreirinha das Mercês quis consolá-la, não pôde. Aquela proximidade, aquele perfume…
Os pensamentos em redemoinho, a língua como se presa, o corpo em febre.
— Afaste-se, por favor! O meu sofrimento foi muito grande, Domênica. Tenha paciência comigo.
E deixou o quarto, em busca de ar livre.
*Escritor e editor, autor dos livros O Fantasma de Licânia, Mulheres Fantásticas, entre outros.
clauderarcanjo@gmail.com