Sobre

Tiro certeiro

Por Natália Chagas

O lugar era pacato, e eu cheguei no rebuliço. Eu havia sido transferida para a agência bancária de São Jorge do Vigário para treinar algumas pessoas local. Era o plano de ampliação do banco implementando novas agências em cidades com poucas pessoas e desenvolvendo recursos para o principal mercado de cada cidade. Em Vigário, como a cidade era chamada, o comércio era o principal foco. Não que tinha muito, mas era a lógica que a central do banco indicava para aumentar a clientela. Sendo o único solteiro na matriz, resolveram que eu passaria um tempo na cidade até que tivesse estabelecido material humano e uma meta mínima de clientes.

Em todos os lugares, eu passava me apresentando:

– Olá, sou Fernando, represento o Banco Mil que está sendo implementado na cidade, e gostaria marcar um horário com você no banco para que conheça nossas vantagens. Te convido para um café na própria agência para que venha ver nossas instalações e saber das vantagens de ser nosso cliente.

Em sua maioria, a população ouvia todo meu discurso e dizia “não”. Era o esperado. Eu precisava ganhar uma pessoa de confiança da cidade para que confiassem em mim e na instituição. Comecei a sair de bermuda, chinelo e camisa velha, e tomar cerveja nos bares, comer nos restaurantes, andar pela cidade, manter o ouvido atento, e perguntar por suas estórias. Em dois dias, eu tinha sete cafés marcados e quatro convites de almoço.

Sempre no final do dia, parava na principal padaria bem no centro da cidade, em frente a praça, do lado da igreja. Nada mais concentrado do que isso. Esse era daqueles lugares que absolutamente todo mundo passava. Gostava de sentar, pedir um café, um bolo, um pão com queijo, e ficar alí esperando as pessoas irem e virem, ouvindo conversas alheias e aberto a quem quisesse conversar comigo. Mas sempre finalizava conversando com Dona Tiana, a dona da padaria. Ela ficava ali no balcão, controlando o caixa e o entra e sai de comidas. O marido era a pessoa da contabilidade e administração. Pareciam fazer uma bela dupla. Um dos filhos os ajudavam e os outros quatro haviam se formado em outras profissões e seguiram rumo da vida.

Dona Tiana contava feliz que há algum tempo a padaria havia crescido bastante, e o marido, José, estava pensando em ampliar para uma das outras pequenas cidades por perto. Ela dizia:

– José está rodando toda a região para ver o melhor lugar para a filial. Ele está bem empolgado com Virgulinha, que não tem uma padaria decente. Uma vez a cada quinze dias, ele fica lá de um dia para o outro para ver local e pessoal para trabalhar.

Era sempre uma alegria ver a empolgação de dona Tiana, pois eu já considerava que a expansão deles seria a do banco também. Talvez assim eu conseguisse bater minha meta e voltar para casa. Então a cada caminhoneiro que entrava no estabelecimento, eu torcia para que ele estivesse com muita fome ou achasse um grande amigo para ficar horas tomando uma cana e pedindo bolinhos de carne. E era muito grande a quantidade de caminhoneiros que entrava alí.

Até que um dia, um caminhoneiro vermelho como pimenta malagueta, bufando ódio e babando injúrias entrou e pediu uma cana. Mandou a garçonete deixar a garrafa. Outro caminhoneiro, reconhecendo o amigo, entrou já perguntando o que houve.

– É a desgraça da minha vida! Aquela mulher vai acabar comigo! Já não bastava eu trabalhar como um burro de carga sem dono, ainda tenho que chegar em casa e dar de cara com a “cornice”. Maldita!

– Como assim, homem? O que houve?

– Você sabe Madalena, Juvenal? A minha mulher daqui?

– Sim, conheço. Já fui na sua casa em Virgulinha.

– Pois é a única que passei papel para casar. Louco por ela. Faço questão de chegar em casa de quinze em quinze dias. Mas tive uma frota cancelada essa semana, então voltei para casa. Podia ter ido encontrar Julieneide em Divino, ou Marilinha em Passagem. Mas não. Senti saudade da morena que acaba com meus pensamentos. Cheguei. Porta aberta. Achei estranho, mas entrei. Fui entrando casa adentro, ouvindo gemido. Quando cheguei no quarto, ‘tá ela lá de perna aberta com um safado no meio dela. A minha vontade era atirar naquela bunda branca do mequetrefe, mas ela viu antes.

– Você matou o homem, Alfredo?

– Não. O tiro pegou no pé.

– Alguém trouxe ele pro hospital? Lá não tem hospital.

– E lá quero saber do maldito? Quero que ele se dane e vá para o inferno.

Virou uma dose de cachaça. Meu olho foi magnetizado pela imagem pálida e imóvel de dona Tiana, que quando percebeu, tratou de passar dedos nos olhos e ir para a cozinha.

Cheguei na padaria uns dois dias depois por conta de tanta comida e bebida, contei para dona Tiana que estava passando muito mal do intestino. Eu precisava continuar trabalhando, mas como estava hospedado no hotel, não tinha como fazer uma comida mais apropriada para as minhas necessidades. Dona Tiana me levou para a casa dela, que era acima da padaria, fez uma sopinha sem gordura de frango e batata, e me colocou no quarto de um de seus filhos com a ordem para eu descansar um pouco, e se for preciso, use o banheiro ao lado. Mas deixou o aviso: “Tenho certeza que minha sopinha vai te curar em algumas horas.” Ela saiu, e eu me deitei e realmente comecei a me sentir melhor.

Eu estava quase dormindo e ouvi um barulho subindo as escadas. Vou ver do que se trata e vejo dona Tiana subindo com seu José nos ombros com o pé enfaixado.

– Ajuda aqui, meu filho.

Corri para pegar seu José com mais firmeza e o levamos para a cama.

– Tem que trocar esse curativo. – disse dona Tiana.

– Não tem necessidade, amada. Eu acabei de vir do médico. Ele falou que está tudo bem.

– Não, nada disso. Vou trocar, sim. Fernando, segura ele que eu vou tirar a faixa.

A mulher me olhava com tamanha mistura de ódio e convicção, que nada eu podia fazer senão obedecer. No rosto de seu José, passavam todas as cores. Ele me olhava com súplica pela cumplicidade masculina, porém meu sentimento de sobrevivência falava mais alto e eu obedeci a dona Tiana.

Ela rodava as faixas olhando com condenação e desprezo para seu José, ditando saber o que havia debaixo da faixa. E ela estava certa. Ali, bem no meio do pé, havia um buraco em formato de bala que estancaram o sangue, mas não fecharam a ferida pois tinha sido atravessada.

– Agora, conta José! Como foi que você conseguiu esse buraco!

– Você não vai acreditar!

– Se você falar a verdade, eu acredito! – Dona Tiana havia desenvolvido uma tonalidade roxa de ódio no rosto.

– É que eu pisei…

– Começou errado! Fernando, eu estou mandando você segurar com todas as forças esse cabra que vai pedir para morrer agora.

Ela tirou um grampo do cabelo, e eu segurei com as forças que nem sabia que tinha. Ela mostrou o grampo para seu José e disse:

– Vai dizer a verdade?

– Pelo amor de Deus, mulher, não faça isso! – As lágrimas corriam dos seus olhos como criança.

– Diga se não foi você que corneou Alfredo, e ele te deu esse tiro no pé! Diga!

– ‘Tá bom, eu confesso, fui eu, sim!

Dona Tiana pegou todas as roupas dele, colocou numa mala, olhou para mim e disse:

-Desce com este traste, Fernando, que o lugar dele é na rua ou com as mulheres que ele escolheu dividir a cama. Porque a que resolveu dividir a vida com ele não existe mais.

Desci com o homem em prantos, pedindo perdão escada abaixo. Ela desceu colocou a mala do lado de fora da porta e se trancou. Naquele dia, meu intestino sarou, seu José sumiu da cidade e eu nunca fiquei sabendo o que ela ia fazer com o grampo.

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Simbora, Papangu!