Sobre

Tatuagem

— Entre, por favor.

— Mas, eu queria só informações…

— Quais?

— De preço e…

— E se dói?

— Como você sabe que iria perguntar isso?

— Todos fazem essas perguntas…

A porta, que mantinha-se entreaberta, escancarou-se com a cumplicidade dos movimentos: ambos seguram os trincos, externo e interno, respectivamente.

Acomodada no pequeno sofá, Lidiane disse que pretendia tatuar uma bailarina em seu braço. Matheus insistiu em conhecer detalhes da escolha.

— Você já foi ou é bailarina?

— Não… a escolha é por conta da música de Chico Buarque.

— Música? Quê música? — intrigou-se Matheus.

A harmonia foi quebrada pela indignação da cliente em constatar que o tatuador não conhecia a música que dizia tanto sobre a profissão do rapaz e, em contrapartida, ouviu desaforos:

— Imagine se alguém chega querendo tatuar um bêbado na mesa de um bar por conta de um brega que roda aí nos bares?

A temperatura aumentou e Matheus, receoso de perder a cliente, ergueu a bandeira branca, dizendo que aquela discussão inicial era comum, porém a escolha definitiva cabia a ela, claro.

Lidiane estava impactada pela rasa cultura do rapaz, que tentou reverter o quadro justificando que não ligava em música, pois se dedicava à leitura.

— Leio Cervantes, Tolstói, Flaubert, Thomas Mann, Machado… Ainda este mês reli Madame Bovary e Dom Casmurro

Enquanto ele falava sobre autores e livros, a jovem pensou em ir embora e procurar outro tatuador que, pelo menos, conhecesse Chico Buarque.

Matheus propôs:

— E uma nota musical?

Um sorriso desfez o franzido do cenho demonstrando que a reconquista tinha sido atingida. Os modelos que apareciam na tela do computador como propostas faziam as discussões se alongarem em torno de cores e tamanhos dos modelos das notas.

Não houve solução naquela tarde que já era engolida pelo lusco-fusco. Mais dois ou três encontros foram necessários para que uma estilizada escala de ré maior fosse perpetuada naquela pele de “ébano polido”, como diria Drummond.

Em compensação, Matheus teve o privilégio de sentar-se na primeira fila do teatro onde Lidiane apresentou seu recital de violino, vestida em um elegante tailleur sem mangas.

Os movimentos dos braços e a aparição de sua obra lhe interessaram muito mais que a sonoridade das cordas do violino.

— Bravo!!! — aplaudiu de pé.

Coube ao professor da laureada entregar-lhe um ramalhete de flores, seguindo-se um respeitoso beijo no rosto. A reação da aluna motivou aplausos, ao agarrar pela nunca o maestro, beijando-o na boca.

Matheus era o único que não entendia a cena, pois aos colegas aquele namoro era familiar. Retirou-se um tanto desvanecido e cabisbaixo, pois tinha sonhado com Lidiane o convidando para tomar um chope, no pós-espetáculo.

*David de Medeiros Leite – Professor da UERN e doutor pela Universidade de Salamanca (Espanha).

Escrito por David Leite

Furar fila para tomar vacina pode, Arnaldo?

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