— Você terminou o segundo grau, não foi? Passou no vestibular?
— Tio, terminei o ensino médio, fiz o Enem (não se chama mais vestibular) e estou na expectativa se, com a nota que tirei, conseguirei entrar, via Sisu, no curso que pretendo.
— Garoto, você tem uma capacidade de enrolar uma conversa, que Ave Maria Cheia de Graça… Quero saber se você fez vestibular, se passou, ou não, e qual o curso que pretende. Somente.
— E o senhor com a mesma capacidade de sempre ser grosseiro, sem paciência de me ouvir e…
— E o quê? Seu mal-agradecido. Estou fazendo as merdas dessas perguntas porque tenho uma proposta de trabalho para você, mas já me arrependi de ter começado a falar.
— Agradeço sua preocupação, quero saber da proposta de trabalho, mas não grite comigo, por favor.
— Não estou gritando, porra. É meu jeito de falar, já disse mil vezes. E não faça essa cara de choro, porque sempre achei essa carinha coisa infantil.
Natália entra na sala, carregando uma singela bandeja com dois copos com água e duas xícaras de café. Servindo-os, dirigiu-se aos dois, tentando serenar os ânimos:
— Nivaldo, meu estimado irmão, Nélio, querido filho, quando verei vocês conversando feito dois adultos, sem agressões?
— Mãe, seu irmão sempre me agride… Não suporto mais isso.
— Tentar botar você pra trabalhar é agressão? Ah, meu Deus!
— Parem, por favor. Onde é a proposta de trabalho, Nivaldo?
— Na lanchonete. Um balconista pediu demissão.
— Vou ser tratado como gente? Ou o senhor vai me gritar e me chamar de bicha na frente de todos?
— Quer ou não quer, seu mimado de uma figa?
Dessa vez foi Natália que desatou num choro e, soluçando, desabafou:
— Nélio, se você não quiser, não tem problema. Eu irei trabalhar na lanchonete de seu tio. Nossa situação é extremamente difícil, desde que… E um de nós dois temos que trabalhar e ajudar nas despesas da casa.
— A senhora faz café, almoço e jantar e limpa a casa desse brutamonte. Será que ele arranjaria uma empregada desse preço?
— Repare bem, menino atrevido, desde que o drogado do seu pai se mandou, vocês vieram para cá e não lhes falta nada.
— Parem, pelo amor de Deus! — disse Natália aos prantos, erguendo as mãos postas.
Houve um longo silêncio. Nélio, acariciando o cabelo de sua mãe, dirigiu-se ao tio em voz quase inaudível.
— Quando posso começar? Qual será meu horário?
— Deve ir comigo, pois abrimos às 6:00 e a mulher que trabalha na cozinha chega às 7:00. Enquanto ela chega, adianto alguma coisa na cozinha e você terá que varrer o salão, limpar mesas e cadeiras e deixar o balcão brilhando. Os fregueses notam tudo. O ambiente deve estar sempre limpo.
— Certo. Amanhã, 5:30, estarei acordado e pronto. Agora vou pro meu quarto assistir a um filme. Boa noite, mãe, boa noite, tio.
— Meu irmão Nivaldo, você sabe quanto sou grata por sua acolhida. Nem sei onde estaríamos se não fosse seu teto.
— Ora, Natália, fiz e faço com gosto. Mas seu filho é insuportável: chato, mimado…
— Por favor, sei muito bem o que você pensa dele… No entanto há um fato que preciso lhe contar. E o farei porque amanhã, literalmente, isso poderá interferir na rotina desse emprego que ele irá começar.
— Preguiça dele para acordar cedo? Reclamar pela jornada? Ou seria pelos calos que a vassoura e o rodo farão nas finas mãos?
— Não, não, não… Escute-me, mano, e prometa que vai entender.
— Sim, o que há de tão grave?
— Quando Nélio tinha 10 anos de idade, certa vez sonhou abrindo uma caixa de leite com chocolate, que ele tanto gostava, e quando ia servir seu copo, em meio ao líquido, saiu um dedo humano. Ele acordou gritando. O pai disse que era frescura e mandou ele ir dormir. Esse sonho transformou-se em trauma. Superando um dilema matrimonial, viabilizei que ele, Nélio, frequentasse por um bom período sessões com um psicólogo especialista em crianças e adolescentes. Mas, ainda assim, após cerca de dez anos o trauma segue: suco, leite ou qualquer outra bebida cuja embalagem seja caixas, ele é incapaz de se servir. E certamente ocorrerá na rotina de balconista de sua lanchonete. Por isso, suplico que você o entenda nesse pormenor.
Ouvindo a irmã com cara de espanto e a boca meio aberta, Nivaldo a interrompeu de forma surpreendente:
— Já tinha percebido que você o servia e, claro, deduzi que seria manha excessiva de mãe. Porém, farei tudo para que ele não precise abrir uma caixa e, com isso, relembrar o sonho-trauma. A lanchonete é pequena e estou atento aos pedidos dos fregueses e prometo intervir na hora que se faça necessário. Sou velho e rabugento, mas tenho sonhos e traumas que me espantam até hoje. Compreendo o medo de dedo de Nélio. Também povoam minha alma outros medos de outros dedos.
Um beijo na testa da irmã selou aquele inusitado pacto laboral e Nivaldo dirigiu-se ao seu quarto, pensativo e ciente de que deveria descansar o corpanzil para iniciar a jornada na madrugada seguinte.
*David de Medeiros Leite – Professor da UERN e Doutor pela Universidade de Salamanca (Espanha)
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