Sobre

A telefonista

Os números no visor do celular se fazem conhecidos. A primeira ligação foi num dia corrido de trabalho. Ignorei. Voltou a chamar numa manhã de sábado. A mulher do outro lado demonstrava um certo nervosismo e perguntou se podia fazer uma oração por mim. Sempre achei indelicado recusar uma palavra de fé independente de quem ofereça. A voz do outro lado começou a recitar profetas dos quais pouco ouvi falar. Logo depois tentou iniciar um diálogo, me fazendo perguntas respondidas com pouco entusiasmo. Agradeceu e desligou.

No contato seguinte explicou tudo de novo, falou seu nome, que estava ligando para números aleatórios e perguntou se eu aceitaria ouvir algo da Bíblia Sagrada. Respondi que tínhamos nos falado antes e que, naquele momento, estava muito ocupada. Ao saber que não éramos completas desconhecidas, a mulher me disse animada que ligava depois.

De lá para cá se passaram meses e as ligações continuam. Descobri que é da Igreja Testemunhas de Jeová, está perto de fazer 70 anos e que a pandemia a fez aprender a se ligar ao mundo e a Deus de forma digital. “Não brinque com essa doença, Ana, é muito grave! Eu mal saio de casa e sempre uso máscaras e álcool em gel”, me adverte, preocupada.

Nos nossos vários contatos chegou a me acordar algumas vezes e até a invadir ressacas valorosas. Expliquei que não tenho religião, que não frequento igrejas, que acredito na Ciência. Outro dia, numa certa provocação, inverti os papéis e comecei a ler para ela trechos do Evangelho segundo o Espiritismo. Me escutou, curiosa, fez perguntas e disse que era interessante e voltou à palavra de seus profetas.

Quando atendo, se mostra tão animada e feliz que fica difícil não ser atenciosa. “Bom dia! É Ana, é?”. Às vezes me chama de Aninha e dispara a recitar coisas de sua fé. Numa dessas, foi tentar explicar que Deus era tipo um cargo, como Bolsonaro ocupava o cargo de presidente. Logo depois me perguntou como eu imaginava o Paraíso. Respondi que não tinha muita ideia, mas a certeza de que Bolsonaro não estaria lá. Ela riu.

Dia desses, ao me pegar tristonha, foi rápida em suas orações e, para minha surpresa, ligou no dia seguinte perguntando se estava tudo bem, que tinha ficado preocupada. É, semana que vem ela deve ligar de novo. Talvez seja a hora de salvar seu nome nos contatos.

Ana Cadengue é jornalista

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