A manhã anunciava seu alarido de vozes e o trinado do passaredo, quando Ferreira das Mercês se sentou para o café.
— Dormiu bem, seu Ferreirinha?
— Sim, boa Lídia. Como há tempo não dormia.
— Seu Zequinha e Dona Djanira já acordaram, tomaram café cedo e saíram, pois tinham compromisso de um batizado na localidade de Santa Rita. Me pediram para não acordar o senhor, que era preciso que o senhor descansasse.
Ferreira coçou o queixo, a cabeça ainda povoada de lembranças. Uma mistura confusa de falas, desencontros e brigas. Serviu-se de uma xícara de café amargo, sorvendo-a lentamente, com ar distante.
— Se alimente, homem de Deus! Pão, tapioca, manteiga, ovos, leite… Sem falar nesta pamonha que Dona Djanira fez ontem. Fica melhor ainda de um dia para o outro — argumentou Lídia.
Para não ser descortês com a empregada do casal que o acolhera tão bem, Ferreirinha serviu-se de um pedaço da pamonha. Levou uma pequena fatia aos lábios; o apetite não o acudia, e a pamonha só inchava na sua boca sem tomar o rumo da garganta.
Lídia, como a evitar constrangê-lo, pegou da vassoura e fingiu varrer a área de serviço, contígua à cozinha. De repente, um choro baixo, Lídia inquietou-se. Sabia cozinhar e conversar coisas de casa, no entanto consolar alguém era algo estranho para ela. “Meu Pai, Mãe de Deus, socorrei-me!”, clamou aos céus.
Aproximou-se da mesa do café e foi tirando a louça, cabisbaixa, olhando de canto de olho para o pequeno homem.
— Ando desorientado, sem rumo; tudo me parece tão embaralhado… como se não me houvesse saída…
— É grande a misericórdia divina — professou Lídia.
Tal sentença, como se enxugasse os olhos marejados de Ferreirinha, recobrou-lhe o ânimo para conversar.
— Sente-se aqui mais próximo, dona Lídia. Preciso conversar com alguém, antes que eu enlouqueça. Você sabe o que me trouxe aqui. Seu Zequinha, homem bom e generoso, me tirou do abandono da rua. Domênica, a minha primeira mulher, havia me posto para fora de casa, há meses. Fui acolhido pela caridosa Gervásia. Esta, também, cansou do meu jeito. Não sei se me comportei, não sei o que fiz… nem se sou digno, à altura da sua acolhida. O coração da gente, sabe, é terra estranha e…
Não conseguiu concluir o raciocínio, a voz embargava e a emoção toldava-lhe o sequenciar da fala.
— É grande a misericórdia…
— … e me vi diante de uma situação por demais esquisita. Na rua, queria voltar para junto de Gervásia. Ao deitar com ela, na solidão da noite em meio à insônia, os olhos de Domênica Melgaço se atreviam perante os meus, e eu só pensava em abraçá-la novamente. Nessa consumição, dona Lídia, Gervásia percebeu a minha divisão e… também me expulsou de casa. Sei que não é certo, mas o que posso fazer, me diga? Me diga? — rogou Ferreira das Mercês.
— É grande a miseri…
— E agora aqui estou, sem mel nem cabaço. As duas ontem vieram aqui, mas, pela paz da minha alma, não posso escolher uma, sem trair a outra. Você me entende, não?
— É grande…
Um silêncio se pôs entre eles. Ferreira tomou das mãos da boa Lídia, apertando-as, em sinal de desalento e angústia, confidenciando-lhe:
— Nesta noite, um sonho me ocorreu. Tenho até vergonha de revelá-lo. A senhora poderia me entender mal.
— É…
Sem esperar por mais nada, ele desabafou, num fôlego só:
— Sonhei que vivia em paz com as duas. De dia, era o bom esposo de Domênica Melgaço, pai zeloso dos meus filhos, cidadão exemplar. À noite, recolhia-me ao lar de Gervásia; e, estando lá, era-lhe um amante fiel, que lhe atendia a todos os desejos. O que a senhora acha?
— Misericórdia! Misericórdia!… — pronunciou, em desespero, Lídia.
Pouco depois, como se sem mais tempo a perder, Lídia fez o sinal da cruz, cuidando de cobrir-se com o seu xale cinza, a fim de correr para prostrar-se aos pés de Cristo na Igreja Matriz de Licânia.
— Misericórdia! Misericórdia!… Pelo amor de Deus!
A manhã alta, com seu bulício costumeiro, nem deu pelo clamor de Lídia a suplicar diante da fechada Matriz.
*Escritor e editor, autor dos livros O Fantasma de Licânia, Mulheres Fantásticas, entre outros.
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