— Minhas desculpas — Ferreirinha, disperso, não deu pela presença daquele senhor, quase indo de encontro a ele, postado na esquina do Mercado Público.
— Não adianta fugir de si mesmo.
— Como? O que disse? — indagou-lhe José Ferreira das Mercês. Só então percebendo que aquele homem, de estatura média e roupa bem cortada, permanecia estático, com os olhos fixos num ponto distante.
Passou a mão no cabelo, como se a querer mantê-lo em alinho, e respondeu, assertivo:
— Eu disse, caro Ferreira, que não adianta você fugir de si mesmo.
E antes que Ferreirinha das Mercês, atônito com aquela intimidade, pudesse emitir qualquer resposta, ele emendou, conselheiro:
— Vamos caminhar um pouco. Flanar pelas ruas sempre renova os nossos pensamentos, sem falar que estimula sobremodo o livre pensar. Se não se importa, siga ao meu lado. Dobremos na próxima rua, à esquerda.
Com os primeiros passos, Ferreira concluiu:
— O senhor é…
— Sim, cego desde os quinze anos. Não se preocupe, a perda da visão não me trouxe maiores problemas. Se eu pudesse lhe explicar, acredite, isso me fez mais… Como poderia lhe dizer, mais atento aos outros sentidos do corpo. Porém não estamos aqui para falar de mim.
Seguiam lado a lado, Ferreira, de início, preocupado com o passeio, com receio de que o outro topasse em algum ponto do trajeto, se atrapalhasse num degrau, ou não desse por uma irregularidade qualquer.
— Nem me apresentei. Permita-me. Muito prazer, sou Edmir Crespo, seu criado.
— Sou… Bem, não sei como, já conhece o meu nome — completou, apertando-lhe a mão direita.
— Não só o nome, como toda a sua história — confidenciou, resoluto.
Antes de dobrarem a esquina, Ferreirinha reteve o passo, e Edmir Crespo, solícito, orientou-o:
— Atenção ao galho do benjamim, a poda foi malfeita, deixando uma ponta bem baixa.
E parou, diante do risco, descrito com riqueza de detalhes.
— Sou amigo de um grande amigo seu: Companheiro Acácio. Ele me escreveu relatando o seu drama pessoal e fiz questão de me dirigir até Licânia, a fim de ajudá-lo a… sair do imbróglio em que se meteu.
Ferreira irritou-se com aquela intromissão nos seus assuntos pessoais. Acácio, julgava-o leal e digno, agora assumindo uma nova condição: a de fuxiqueiro.
— Dobremos a esquina e paremos para um caldo de cana. Reflete-se melhor sem o aperreio do estômago.
Edmir sentou-se no tamborete mais distante do balcão e, apontando para o outro, pediu-lhe:
— Diga ao Gazumba que nos sirva dois copos com bem gelo.
— E o senhor conhece toda a…
— Mais coisas do que você possa imaginar, seu Ferreirinha.
Foi ao balcão; e, com pouco mais, bebiam o famoso caldo de cana do Mercado, em silêncio de regalo.
— Uma esmola para o ceguinho, meus bons cidadãos. Pelo amor de Deus!
Seu Crespo irritou-se, elevando a voz para o pedinte, quase a esbravejar:
— Vá trabalhar, filho de Deus. O cego aqui sou eu, não me faça de moleque. Ora, bolas!
O falso cego cuidou de se afastar depressa, antes que os demais presentes dessem com o seu embuste. Foi rogar caridade alheia no outro lado da feira.
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— A cegueira não faz do homem um ser menor. Muito menos um imprestável para a luta da vida… Bom, isso é assunto para uma outra ocasião, senhor Ferreira, voltemos ao ponto que nos une. Como eu ia lhe explicando, não se deve fugir de si mesmo — disse-lhe, em ar de antigo confidente.
— Mas quem aqui está fugindo? — questionou-lhe José Ferreira das Mercês.
Edmir Crespo arregalou os olhos, como se a visão lhe voltasse, e pronunciou, em desabafo raivoso:
— Ora, ora, quem mergulhou no mar da pindaíba aqui? Quem foi expulso de casa pela esposa, a senhora Domênica Melgaço? Quem ganhou os braços de uma caridosa dama, a senhora Gervásia? E quem recorreu aos serviços da cartomante Marlúcia de Oxum? E a atração pela enfermeira Magda?…
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Caminharam até o portão da casa. Lá chegando, o trinado do passaredo a retornar para os benjamins de Licânia.
— Muito obrigado, Edmir Crespo. Você abriu os meus olhos.
E riram com a piada não intencional. Abraçaram-se e, antes de entrar, Ferreira das Mercês perguntou:
— Como o senhor vai voltar?
— Não se preocupe, deixei meu filho Crespinho na praça da Matriz, ele ficou brincando com a meninada em frente da igreja. De lá, seguiremos no próximo carro de praça. Já me informei que sairá um às sete da noite.
— Venham jantar conosco! Conheço bem Domênica, a comida está feita e, em nosso lar, há sempre lugar para mais…
Silenciaram. Crespo apertou, forte, a sua mão, dizendo-lhe:
— Essa conversa entre vocês dois não pode mais ser adiada, nem poderá ter testemunhas. Peça para Telzinho e Belinha irem tomar um sorvete na residência de dona Gildinha.
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Ferreirinha entrou e viu a mesa do jantar já posta. No centro da sala, a presença de Domênica. Num elegante vestido vermelho, realçando-lhe as formas do corpo.
— As crianças estão…
Ferreirinha não a deixou concluir:
— Eu sei. Estão com comadre Gildinha. Aproxime-se, por favor, Domênica! O nosso sofrimento foi muito grande. Tudo agora, creio, ficará na conta do passado. Tenha paciência comigo.
E deram-se as mãos, rumando para o quarto de casal, em busca de recompor as bases de um amor que, até algum tempo atrás, era tão só uma cega rotina.
*Escritor e editor, autor dos livros O Fantasma de Licânia, Mulheres Fantásticas, entre outros.
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