Sobre

Doce fel

Por Natália Chagas

Desde quando me mudei para Távora, minha esposa, Eduarda, se tornou muito amiga de Ivana, a vizinha do lado. Ela sempre solícita e disposta nos trazia bolos, biscoitos que ela mesma fazia com um acolhimento e sorrisos inigualáveis. Apesar de ser uma mulher grande, mais alta do que eu e com ossos largos, apresentava uma doçura que quase parecia de uma criança. Participávamos, eu e minha esposa, dos churrascos de domingo em família com eles em que uniam Ivana, João Carlos, o marido, os cinco filhos, mais irmãos, sobrinhos em uma confraternização alegre com muita risada e comida. Eu notava, sendo apaixonado por uma cervejinha, a ausência nesses encontros de qualquer bebida alcóolica. Mas como era um momento familiar, isto não tinha tanta relevância.

Com o passar do tempo, descobri a importância desse detalhe. Sempre que eu saía do escritório, passava pelo bar mais frequentado do bairro, o bar do Bigode. Nem todos os dias havia a presença de João Carlos, mas quando ele se fazia presente, não tinha para mais ninguém. Ele bebia todas e mais algumas. Não havia ser vivente no planeta que o fazia parar para ir para casa. Além de cair de bêbado no meio da madrugada, gerava inconveniências de todo tipo. Queria arrumar brigas, bulia com mulheres, prometia dinheiro, distribuía ódio e amores em inúmeras formas.

Eduarda tomou as dores de Ivana e ficava revoltada. Eu queria entender o camarada, mas era difícil quando se convive com alguém tão doce quanto a esposa que sofria o sumiço do marido e as satisfações que tinha que responder pelo cidadão enquanto bêbado. As pessoas batiam na sua porta requerendo as promessas feitas na noite anterior que ela desconhecia, e ele apagado de ressaca não conseguia se explicar. Talvez nem se lembrasse. No bar, o Bigode já havia tentado não dar bebida para ele. Mas era pior. Ele ia em bares de desconhecidos e as confusões aumentavam. Alí, no final da noite, o próprio Bigode ligava para Ivana para rebocar o pobre diabo. Ela, muito mais forte que ele, o carregava para casa de forma discreta e conformada. Era uma situação realmente constrangedora.

Até que um dia algo inusitado aconteceu. João Carlos foi beber as mágoas do mundo no dia no aniversário do filho mais velho. Inclusive dando isto como desculpa. Bebeu da tarde até a noite, e escornou em um canto. Bigode, imediatamente sabendo da importância do dia, ligou para Ivana porque de outra forma o caboclo perderia o aniversário do primogênito. Eduarda estava ajudando nos preparativos da festa, e ficou durante todo processo junto de Ivana. Ajudou, até mesmo, a dar banho em João Carlos para passar o porre. Elas colocaram o caboclo de pé e respeitável para os parabéns do pequeno.

Tudo durante a festa correu integramente bem. Ninguém percebeu um possível desvio da conduta do pai do aniversariante. Eu mesmo me surpreendi com a força e resistência para superar o porre que ele se impunha.

Eis que no dia seguinte, Eduarda amanheceu na casa vizinha para ajudar na faxina. Ivana chegou muito próxima de Eduarda e disse baixinho:

–  Confio em você. Gostaria que nada ultrapassasse essas paredes.

Eduarda, prontamente, respondeu:

– Sem o menor problema.

No meio da labuta, Eduarda ouviu barulhos de chicotes e gritos de dor. O susto só acalmou quando ela percebeu que os gritos de dor eram de um homem, e que, na verdade, havia gritos de mulher berrando: “canalha”, “aprenda a viver direito”, “seu filho não merece isso”, entre outros.  Eduarda achou melhor levar as crianças para praça ao perceber a surra que Ivana aplicava em João Carlos.  No caminho do parque, uma das filhas disse:

– Xi! Papai se encrencou de novo!

Passado

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