Por Natália Chagas
A partir de 2020, uma epidemia se alastrou pelo mundo nomeada COVID—19. Esta nova cepa gerou mais de 30.000.000 casos com mais de 680.000 mortes no Brasil. A sequência de diálogos que seguem abaixo é de uma das várias famílias destruídas pelo vírus, e tudo que o envolve, em apenas um dia. Apesar de nomes modificados, este é um texto baseado em fatos reais.
— Bom dia, dona Ingrid!
— Bom dia, Genú! Ela acordou?
— Não, senhora. Ontem à noite, tomou o remedinho dela e até agora nada. Entrei de fininho no quarto para pegar umas roupas para lavar, e ela está em um sono pesado.
— Deixa ela dormir. É melhor. E Igor? Já acordou?
— Honestamente? Acho que nem dormiu. Ficou a noite toda andando pra lá e pra cá pela casa sem lugar no mundo. Lá se foi mais de meia garrafa de whisky. E dos bão! Daqueles que seu Irineu guardava para as ocasiões especiais, né? De vez em quando, eu vinha na cozinha, a senhora sabe que eu tenho sono leve, né? Então… eu vinha beber uma água, ou um chá, aproveitava e verificava se seu Igor não havia quebrado nada. Senhora sabe, né? Na hora da raiva, um copo sempre voa. Quem há de condenar um coração amargurado? Mais triste do que um copo quebrado são as lembranças despedaçadas. Mas é sempre bom ter alguém que limpe para a gente no momento de desespero?
— Tá certo. Você, então, também não dormiu?
— Como é que dorme tendo que passar e lavar a roupa que ele mais gostava, dona Ingrid? Toda hora que eu passo pela sala, eu vejo a imagem dele sentado na cabeceira da mesa com o baralhinho jogando paciência. Ele ainda não passou de fora pra dentro.
— De fora pra dentro? Como assim, Genú?
— É o processo do luto, dona Ingrid. O morto só deixa o mundo dos vivos se ele se encaixa dentro da gente, entra pra nossa alma fazendo parte de todos nós, cada um com seu pedacinho. Foi o que minha mãe me ensinou.
— Tá bom, Genú. Deixa eu ver o que se passa com Igor.
— Ele tá no quarto.
— Você ouviu essa da Genú? O morto só sai do mundo dos vivos quando ele sai de fora e entra na nossa alma, cada um com seu pedacinho…
— Você devia ouvir mais a Genú. Ela sabe ser humana.
— E eu não sei?
— Não sei se uma pessoa que trabalha no meio da saúde, sabe de riscos de contágio de um vírus, reconhece taxa de mortalidade em meio a uma pandemia não usa uma máscara, nem álcool em gel, luvas sei lá… e deixa o pai idoso com a possibilidade de pegar e…
— Era uma gripe! E eu dei ivermectina a ele. Não me venha culpar pela fragilidade normal da idade dele.
— Não foi a idade dele, foi a exposição. Você fazia questão de vir aqui em casa depois da faculdade, que você fez tanta questão de manter aberta presencial, para dar um beijo e um abraço sem um cuidado sequer. Não é possível que você não enxerga que você trouxe isso para ele?
— Deus tem seus caminhos tortos que devemos aceitar.
— Qual Deus? O que você dá a benção na igreja no domingo? Ou o que você se ajoelha no sábado à noite no motel quando seu marido está em casa com seus filhos achando que você está em confraternização do trabalho?
— Você não tem o direito…
— De falar o que toda cidade já sabe, sua hipócrita? Que você não tem respeito por sua família, que desvia dinheiro da faculdade e de bolsa de aluno? Você nunca me enganou, e hoje eu estou por aqui.
— Você está bêbado!
— Mas lúcido!
— O que está acontecendo aqui? Tá dando pra ouvir os gritos de vocês lá da portaria…
— Oi Junior. O bêbado do seu irmão está me acusando.
— Impressionante como que nessa hora eu sou só irmão dele, né, maninha?
— Gente, vamos parar com isso. Mamãe deve acordar a qualquer momento, e a gente tem que estar preparado e unido. Existe uma dor maior que envolve a todos nós. Venha, Ingrid, vamos tomar um café.
— Genú, traz um café pra gente. E me conta como ela estava na última semana que eu não pude estar aqui.
— Olha, seu Irineuzinho, a dona Ceci já tinha os esquecimentos dela, né? Perguntava toda hora, a mesma coisa, se eu tinha lavado a roupa, o que ia ser de almoço, se seu Igor já tinha comido… todo dia, toda hora, a mesma pergunta 3, 4 vezes. Mas de manhã bem cedo ela sempre perguntava por seu Irineu, 1 vez só, no fim do dia, ela sabia exatamente o que as pessoas haviam lhe dito de manhã. Ele era sua única lembrança. E era diária.
— Eu não entendo porque ele fala assim comigo. Será que ele não vê que eu também sou uma vítima? Eu também sofro. Eu estive aqui do lado de mamãe todo esse tempo também.
— Olha, Ingrid, eu não compartilho das coisas e das formas que Igor fala, mas você há de compreender que, sendo você a única na família da área da saúde, deveria ter um cuidado a mais e não teve.
— Você também me acusando? Pois eu rezei muito para que nada acontecesse em nossa família. Deus é testemunha de minha devoção. Segui o protocolo que recebi do ministério da saúde à risca, sempre honrei pai, mãe e família, lutei com todas as minhas forças para tornar nossa pátria um lugar mais digno para as pessoas de bem melhorassem suas vidas, dei oportunidades aos que mereceram de estudo e crescimento…
— A que preço, Ingrid? Merecimento por dinheiro do “papai” é fácil, e a sua faculdade não é das mais baratas.
— Olha, Junior, nem todos nós podemos ter cargos públicos…
— Lógico que não. Cortaram os editais e as verbas.
— Olha o cafezinho! Apesar que eu já, já faço um suquinho de maracujá para todo mundo. Seu Irineuzinho, vai ter velório?
— Não, Genú. Não podemos enterrá—lo…
— Não chora, seu Irineuzinho! Vou trazer uns biscoitos de nata.
— Não entendo porque vocês acham que só vocês sofrem.
— Porque a gente tentou remediar. E você, nessa sua cegueira científica, insistiu em defender o que há de pior no meio humano, a barbárie, o genocídio. Junior viu você, de verde e amarelo, defendendo, mais de uma vez, a economia das empresas sob a vida humana. Mais vale manter as empresas abertas, não é maninha, do que a vida dentro de casa. Porque a economia tem que continuar de pé para manter o país andando. Eu não vejo nada humano em você.
— Oi, meus filhos!
— Oi, mãe. Te acordamos?
— Não, Igor. Já estava na hora. Que bom ter todos vocês aqui. Meus filhos juntos. Que alegria! Tem café?
— Sim, mãe. Genú acabou de trazer. Sente—se aqui conosco. Temos que conversar.
— Ingrid, você já foi ver como está seu pai no hospital? Já mandaram o relatório hospitalar?
— Mãezinha, temos uma notícia que não é boa nem pra falar, nem para ouvir, mas é necessária.
— Necessária é a vida, Júnior. E o tempo é a alma da vida, não devemos perdê-lo. Diga logo sua notícia.
— Papai piorou muito essa noite, mamãe. E no fim da madrugada, ele não resistiu.
…
— Mãe, você está bem?
— Mãezinha, você está muito quieta.
— Mãe, fala alguma coisa.
— Dona Ceci, por que tá levantando? Toma mais um café com biscoitos de nata que a senhora gosta tanto.
— Mãe, onde a senhora vai?
— Ué? Vou pro meu quarto.
— Por quê? O que vai fazer lá?
— Vou dormir.
— Como assim, mamãe? Vai dormir?
— Sim, minha filha. É lá que eu vou encontrar o meu amor. Ele não está mais aqui.